Ad image

Exu não é Satanás: Uma campanha iorubá contra o preconceito religioso

14 Leitura mínima
Exu não é Satanás: Uma campanha iorubá contra o preconceito religioso

Adeptos da religião tradicional iorubá na passeata “ÈṢÙ não é Satanás”, em Osogbo. Foto de Iyanifa Egbetunmise, usada sob permissão.

Em 24 de dezembro, os adeptos da religião tradicional iorubá foram às ruas em Lagos, capital da Nigéria, assim como em Osogbo e em cidades do mundo todo, para protestar contra um erro histórico que já tem provocado discriminação religiosa há séculos. Os tradicionalistas foram vistos nas ruas trajando coletes e segurando cartazes e faixas com mensagens. Por séculos, os adeptos de religiões abraâmicas vêm equiparando a divindade iorubá Exu (também chamada de Exu) com Satanás, o qual é uma figura tida como a encarnação do mal e como o adversário de Deus no Islã, no Cristianismo e no Judaísmo. Os iorubá são um importante grupo de povos da África Ocidental, com grandes populações na Nigéria, Benin e Togo, e com uma diáspora mundial. Muitas pessoas iorubá praticam a religião tradicional do povo.

Os tradicionalistas transmitiram a campanha em estações de rádio e TV por toda a Nigéria, e espalharam conteúdos nas redes sociais com a hashtag #EsuIsNotSatan (“#ExuNãoÉSatanás”) para dar visibilidade à passeata:

Will you be there? #esuisnotsatan #december24#africashrine pic.twitter.com/ch8JP6gbLl

— BABA AJISEFA (@ILE_AJISEFA) December 1, 2024

Você vai?

Palestras públicas aconteceram em Osogbo e Lagos, na Nigéria. Outros países também fizeram parte da campanha, como México, Espanha, Estados Unidos e outras regiões da diáspora africana onde há grande número de adeptos da religião tradicional iorubá.

A raiz do erro histórico

Em 1860, o Bispo Samuel Ajayi Crowther, primeiro bispo africano da igreja anglicana, foi incumbido pela Christian Mission Society a traduzir a Bíblia Sagrada para a língua iorubá, para que o povo iorubá tivesse acesso ao evangelho em sua língua nativa.

A tarefa era crucial, pois ele tinha de criar uma forma escrita para uma língua que, até então, existia principalmente em forma oral. O Bispo Crowther passou toda a vida trabalhando na padronização da língua iorubá, bem como de outras línguas africanas como nupe e igbo. Não apenas ele conseguiu traduzir a Bíblia, mas também compilou o primeiro dicionário iorubá e publicou uma gramática do iorubá em 1843.

Ao traduzir a Bíblia, Crowther cometeu um erro responsável por séculos de discriminação religiosa. Ele localizou Satanás como Exu. Esta localização retrata a divindade iorubá como uma encarnação do mal, tal como Satanás. Diferente das religiões abraâmicas, nas quais é comum que o bem e o mal sejam representados como forças opostas, a visão de mundo iorubá os vê como forças complementares. Exu é a divindade encarregada de controlar e regular as forças do mundo. Os iorubá creem que nada seja totalmente bom ou mau, e que coisas boas podem surgir de acontecimentos ruins assim como coisas ruins podem resultar de bons acontecimentos.

Contendo o equívoco

A tradução completa da Bíblia iorubá feita por Crowther foi publicada há 140 anos, e mesmo após todo esse tempo, o equívoco de se entender Exu como sendo Satanás ainda é comum. A cultura popular e a mídia também promoveram essa narrativa negativa. Ao ver o impacto negativo que isso tem em sua religião, um grupo de tradicionalistas começou uma campanha em 2014 para corrigir o erro, designando o dia 24 de dezembro como um dia para educar o público sobre a religião e cultura iorubá.

Em resposta a uma conversa via WhatsApp com a Global Voices em 28 de dezembro de 2024, Akanbi Ifadola Afofun, um empreendedor tradicionalista que mora em Lagos, Nigéria, compartilhou suas ideias sobre esse equívoco em relação a Exu e sobre a campanha #EsuIsNotSatan.

Abdulrosheed Fadipe (AF): Como você se sente a respeito de como Exu é retratado na cultura popular e na mídia?

IA: I feel sorry for Yoruba people because of the way Esu is portrayed in the media. Part of what I am doing is actively educating people on the identity and importance of Esu so they can understand Esu is not similar to Satan. Esu is the deity that guides the entrances, exits, crossroads, and markets in Yorubaland. It is described as neither completely good nor evil. Esu punishes those who break cosmic laws. In fact, he is regarded as the messenger of Orunmila, an Orisha that brought the word of Olodumare to the world. We are trying to stop the misrepresentation of Esu in the media.

IA: Sinto muito pelo povo iorubá pelo jeito como Exu é retratado na mídia. Parte do que eu faço é educar as pessoas sobre a identidade e importância de Exu, pra que elas entendam que Exu não é semelhante a Satanás. Exu é a divindade que guia as entradas, saídas, encruzilhadas e mercados da Iorubalândia. Ele é descrito como não sendo de todo bem ou mal. Exu pune aqueles que quebram as leis cósmicas. Inclusive, ele é considerado o mensageiro de Orumilá, um Orixá que trouxe a palavra de Olodumarê ao mundo. Estamos tentando acabar com a deturpação de Exu na mídia.

AF: Há alguma história pessoal que você possa compartilhar envolvendo esse equívoco de entender Exu como Satanás?

IA: Growing up, I faced misconceptions about Esu due to the conflation of Yoruba spirituality with Western religious concepts. Esu was often wrongly equated with Satan, a misunderstanding that negatively impacted my relationship with this revered deity.

IA: Enquanto eu crescia, enfrentei muitas opiniões equivocadas sobre Exu, por causa da mistura da espiritualidade iorubá com conceitos religiosos ocidentais. Exu era muitas vezes equiparado a Satanás, um mal-entendido que teve efeitos negativos na minha relação com essa reverenciada divindade.

AF: Quais são suas crenças fundamentais a respeito do papel de Exu na cosmologia iorubá? Como Exu se distingue do conceito de Satanás nas religiões abraâmicas?

IA: I’m not a Bible scholar, but looking at how the bible describes Satan as the one that always fights the Abrahamic God, I believe there is nothing that Esu has in common with Satan of the Abrahamic religion. Esu is not fighting with a higher power for supremacy. Our own Esu is the figure that maintains law and order In the cosmic realm. We call Esu the police. It was the mistake of Bishop Ajayi Crowther, the man who translated the bible into Yoruba that caused the misconception.

IA: Não sou estudioso da Bíblia, mas ao olhar a forma como a Bíblia descreve Satanás como sendo sempre aquele que luta contra o Deus abraâmico, creio que não há nada que Exu tenha em comum com Satanás da crença abraâmica. Exu não luta contra uma força maior pela supremacia. O nosso Exu é a figura que mantém a lei e a ordem no reino cósmico. Dizemos que Exu é a polícia. Foi um erro do Bispo Ajayi Crowther, o homem que traduziu a Bíblia para iorubá, que provocou esse equívoco.

AF: O que o inspirou em participar da campanha #EsuIsNotSatan?

IA: What inspired me to participate in the campaign is that I feel that the translation of many Yoruba concepts in English are inaccurate and misleading. Another thing that inspired me is the urgent need for the preservation of Yoruba language and culture. Another thing is I am an Ifa priest from a lineage of Esu devotees.

IA: O que me inspirou foi minha sensação de que a tradução de muitos conceitos iorubá para o inglês são equivocadas e enganosas. Outra coisa foi a urgente necessidade de preservar a língua e cultura iorubá. E mais uma, o fato de que eu sou um sacerdote Ifá de uma linhagem de devotos de Exu.

AF: Como a campanha impactou a forma como a religião e a cultura iorubá são percebidas, tanto na Nigéria quanto na diáspora?

IA: The #EsuIsNotSatan campaign has had a significant impact on Yoruba religion and culture. A good example of the positive impact of the campaign is how Google, the most used search engine, has changed its representation and translation of Esu. I must mention the name of the man who started the campaign ten years ago at this point, Oluwo Solagbade Popoola. Since the beginning of the campaign, there has been a huge increase in the number of people who are converting to the Yoruba traditional religion. The hashtag #EsuIsNotSatan was the most trending on Twitter on December 24. Many people are now seeking to reconnect with their roots. The campaign has also opened the eyes of Yoruba traditional religion adherents to the importance of promoting their faith.

IA: A campanha #EsuIsNotSatan teve um impacto significativo na religião e cultura iorubá. Um bom exemplo desse impacto positivo é como o Google, o mecanismo de busca mais usado, mudou sua representação e tradução de Exu. Nesse momento, não posso deixar de citar o nome do homem que iniciou a campanha, há dez anos: Oluwo Solagbade Popoola. Desde o começo da campanha, houve um aumento enorme no número de pessoas que têm se convertido à religião tradicional iorubá. A hashtag  #EsuIsNotSatan foi a mais usada no Twitter em 24 de dezembro. Muita gente agora está buscando se reconectar com suas raízes. A campanha também abriu os olhos dos adeptos da religião tradicional iorubá para a importância de promover sua fé.

AF: Que desafios você enfrentou durante a conscientização sobre essa questão?

IA: It has not been easy. One of the challenges is the lack of government support in incorporating accurate information about Yoruba belief systems into the education curriculum. This has allowed misconceptions to be introduced to the younger generation. While social media has been a useful tool, addressing the root of the problem, the curriculum remains a significant challenge. We are working towards changing the educational curriculum to accurately represent Yoruba worldviews.

IA: Não tem sido fácil. Um dos desafios é a falta de apoio governamental na incorporação de informações corretas sobre as crenças iorubá no currículo educacional. Isso permitiu que informações equivocadas fossem passadas para a geração mais nova. Ainda que as redes sociais sejam uma ferramenta útil, lidar com a raiz do problema, o currículo, ainda é um grande desafio. Estamos trabalhando para mudar o currículo educacional, para que represente corretamente as visões de mundo iorubá.

AF: Como acha que a campanha influenciou o diálogo inter-religioso e a tolerância religiosa?

IA: Some of the adherents of Abrahamic religions are becoming more tolerant towards traditionalists. Some of the preachers have stopped representing Satan as Esu. We have seen an increase in how people embrace Yoruba culture in their use of language and mode of dressing. We understand that misconception cannot be changed in a day, but we are gradually getting there.

IA: Alguns adeptos de religiões abraâmicas estão ficando mais tolerantes quanto aos tradicionalistas. Alguns pregadores pararam de representar Satanás como Exu. Vimos um aumento em como as pessoas adotam a cultura iorubá em seu uso da linguagem e suas vestimentas. Entendemos que não dá para mudar informações equivocadas em um único dia, mas pouco a pouco estamos chegando lá.

Aqui está um vídeo dos tradicionalistas na passeata em Lagos.

Os tradicionalistas esperam que a sensibilização do público ajude a reduzir impressões erradas e estimule a tolerância religiosa.

Compartilhe este artigo
Sair da versão mobile