A publicação do Diário Oficial da União, nesta quinta-feira (24), do decreto que regulamenta como deve ser o Plano Nacional de Cuidados – PNC (lei 15.069/2024) foi celebrada pelos participantes do 18º Festival Latinidade durante o 2º Encontro Nacional da Rede MultiAtores com o tema Jovens Mulheres Negras e os Desafios do Trabalho Digno, no Museu Nacional da República, no centro de Brasília.
A fundadora do Festival Latinidades e diretora do Instituto Afrolatinas, Jaqueline Fernandes, disse à Agência Brasil, que o encontro realizado em parceria com o Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) discute o trabalho digno e as oportunidades para jovens negras. “Essa atividade está voltada para a juventude negra e as mulheres negras no mercado de trabalho. Anos atrás, o Latinidades dedicou uma edição inteira a pensar as mulheres negras no mercado de trabalho e, agora, viemos com esse recorte específico de juventude, por meio do Ceert, com muita expectativa de aprofundar esse debate”.
Jaqueline Fernandes conta que o encontro discute o trabalho digno e as oportunidades para jovens negras Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Trabalho desproporcional
Na primeira mesa de discussão do dia, os presentes debateram a redistribuição das responsabilidades do trabalho do cuidado, que historicamente recaem de forma desproporcional sobre as mulheres.
Em participação, a secretária Nacional de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Laís Abramo, detalhou dados da pasta que apontam que 75% do trabalho do cuidado no Brasil é exercido por mulheres, sendo 45% delas mulheres negras e 25% trabalhadoras domésticas.
A secretária do MDS lembrou também que a carga desproporcional do trabalho de cuidados foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023. E que a nova Política Nacional de Cuidados institui o direito ao cuidado e define que trabalho deve ser garantido por meio da divisão de responsabilidades “entre homens e mulheres, entre a família, a comunidade, o setor privado e o Estado, enfrentando as múltiplas desigualdades culturais que são de gênero, raça, etnia, classe social, território, idade e deficiência”.
“Apesar de ter sido historicamente pensado como algo pouco importante, invisibilizado, a gente entende que o cuidado é um trabalho, uma necessidade e um direito de todas as pessoas. A ideia é que ele possibilita a realização de qualquer outro trabalho, portanto, ele é um tema central na organização da sociedade”, reforça Laís Abramo.
Herança colonial
Sob a ótica de uma pessoa negra, o professor associado da Universidade de Brasília (UnB) Breitner Luiz Tavares explica que o trabalho de cuidados realizado, sobretudo, por mulheres negras vulneráveis foi herdado do período colonial, no Brasil. “O trabalho de cuidados seja doméstico, emocional ou comunitário não é um destino racializado. É uma herança colonial que, ainda hoje, aprisiona corpos negros, especialmente, o de mulheres.
O docente mencionou políticas como a lei de cotas, a PEC [Emenda constitucional nº 72/2013,] das Domésticas.
“Políticas que mostraram que as mudanças são possíveis, mas sabemos que só avançarão quando forem desenhadas com vocês. Não para vocês. Nenhuma política será legítima sem a voz de quem vive pelas suas consequências.”
Já a coordenadora da área de Juventudes Negras do Ceert, Luanda Mayra, falou sobre trabalho digno, direitos fundamentais e a necessidade da política de cuidados para, primeiramente, reconhecer que se trata de um trabalho e precisa ser remunerado, e em seguida, que se redistribua o trabalho entre homens e mulheres.
“Estamos falando de oportunidades reais para as jovens e mulheres para tenham acesso à formação de qualidade, a empregabilidade com justiça e ambiente de trabalho livre de racismo e violência.
Para a coordenadora, a transformação só é possível quando as juventudes estão no centro da política.
“E mais do que ocupar espaços, essas jovens negras têm elaborado soluções, denunciado violências e construído caminhos. Sem as mulheres negras, sem as jovens mulheres negras, não há justiça nem democracia possíveis.”
Outra palestrante presente que concordou que o trabalho de cuidados é, desde sempre, escravocrata, foi a integrante da Rede de Ativistas do Fundo Malala no Brasil, Gisele Santos.
Ao enaltecer a trajetória de suas antepassadas negras, ela buscou exemplos do passado até o presente. “Penso que esse cuidado é uma herança escravocrata, uma herança colonial. Pois as mulheres brancas podem ter o desejo e ter o direito de cuidado. Às mulheres negras, não há escolha. O cuidado nos é imposto desde o momento que nós estamos gestando, desde o momento que nascemos.”
Como saída, nos dias atuais, a ativista Gisele Santos defende que o Estado, por meio da nova Política Nacional de Cuidados, seja de fato, pautado pela realidade das mulheres negras e que a sociedade brasileira divida responsabilidades. “Esse desafio não é somente nosso. É preciso entender as nossas interseccionalidades, que são gigantescas, pois somos plurais, mas que devem ser levadas em consideração nessa construção”.
A diretora executiva do Instituto Pólis, onde coordena o eixo de justiça racial, de gênero e LGBTQIAPN+, Cássia Caneco, revelou que é filha de uma empregada doméstica negra, que desde os 10 anos de idade cuidava dos irmãos e aos 19, era chefe de família.
Ao citar o filme brasileiro de drama Que Horas Ela Volta?, de 2015, Cássia Caneco questionou quem cuida de quem cuida de outras famílias. “Quem são as pessoas que, tendo direito ao cuidado, não têm uma estrutura que garanta a existência, o desenvolvimento, a educação? Por isso, acho que essa política de cuidados tem o sentido reparatório. É uma política importante e uma pauta histórica do feminismo no Brasil. É também uma política que propõe a gente ter cuidado. A gente redistribui o trabalho. Vem aí uma quebra de paradigmas”, estima Cássia.
Entrada do 18º Festival Latinidades 2025, no Museu Nacional – Valter Campanato/Agência Brasil
Economia preta
A produtora do Festival Latinidades, Kellen Vieira, trouxe dados de uma pesquisa de mercado realizadas pelo PretaHub e pelo Instituto Locomotivas que identificou que entre os trabalhadores das áreas de economia criativa e produção de eventos, 90% são autônomos, ou seja, sem vínculo formal de trabalho; 56% deles têm a produção como fonte principal de renda e 97% dos negros que trabalham com cultura já passaram ou presenciaram situações de racismo. “Essa é uma questão que a gente precisa colocar para que as empresas consigam entender e aceitar a gente”, defende Kellen Vieira.
Ela ainda citou que seis em cada dez profissionais deste meio são mulheres de até 29 anos, pretas, solteiras, hétero e com ensino superior. E por isso, Kellen Vieira questiona se, após mais de uma década da Lei de Cotas (nº 12.711/2012), que reserva vagas em universidades e institutos federais para pessoas negras, se o mercado de trabalho está preparado para receber quem sai da graduação, sem racismo. “Ter muita gente conhecendo o ensino superior toca em um ponto sensível: o mercado de trabalho está preparado para receber pessoas negras que têm o ensino superior? Este número está crescendo. Mas, elas estão sendo colocadas no mercado de trabalho da maneira adequada, com um salário adequado para isso?”, questionou.
Mercado privado
O chefe da Assessoria de Promoção da Igualdade Racial no Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e professor universitário, Ronaldo Crispim, destacou políticas atuais do governo federal, como a lei que amplia de 20% para 30% a reserva de vagas em concursos públicos a pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas, sancionada em junho pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Ronaldo Crispim detalha que o setor privado não segue o mesmo ritmo de equidade racial e de gênero, como atestado no Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, com dados da RAIS preenchido pelas empresas, por semestre, desde 2024, com dados da RAIS. “Uma mulher negra recebe menos da metade de um salário de um homem branco, mesmo em cargos de direção. A gente precisa avançar muito, mesmo com as políticas de compliance, da agenda ESG [Ambiental, Social e Governança, em inglês], e objetivo de igualdade de gênero da ONU (Organização das Nações Unidas].”
Para Ronaldo Crispim, o modelo da administração pública federal deve ser replicado no setor privado. “Empresas gigantes – nacionais e multinacionais – já conseguiram, por exemplo, ter paridade de gênero na direção. Mas, quando esse relatório pergunta: vocês têm políticas que valorizam as mulheres e as mulheres negras? não se verifica o desempenho. Muito pelo contrário. O percentual é de 0,3% das empresas”, lamentou.
Esperançar e Bem viver
Pegando carona no conceito do “bem viver”, adotado por povos indígenas, a advocacy na empresa Ação Educativa, Andreia Alves, defendeu que a vida centrada apenas na sobrevivência possa dar espaço à construção de novas de possibilidades, a partir de se colocar no lugar dos outros. “A gente tem que estar no lugar da identidade empática e de repensar as lógicas do modo de vida e construir essa realidade.”
Para ela, o momento é de “esperançar” ou seja, de ter esperança, mas sem ser uma espera passiva, como ela identifica na canção Boa Esperança, do rapper paulistano Emicida.
“Vejo muita potencialidade nas jovens mulheres negras. Apesar de saber que não está tudo muito bom, a gente tem um caminho muito bonito e de luta. A gente tem que seguir lutando”, declara Andreia Alves.
A 18ª edição do Festival Latinidades ainda teve duas mesas de debates sobre trabalho digno e garantia de direitos das jovens negras brasileiras. A primeira delas: Jovens Negras no Centro: Desafios e Avanços da Lei de Aprendizagem. A última roda de conversas do dia tratou das Jovens Negras e Mudanças Climáticas: Teremos Dignidade no Futuro do Trabalho?.
>>>> Confira a programação completa do festival;
O 18º Festival Latinidades: Mulheres Negras Movem o Mundo! vai até o dia 31 de julho;