A filantropia empresarial é um setor em expansão no país. No entanto, a maioria das iniciativas na área da soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) encontradas no país ainda é regional, realizada pontualmente e, em geral, pouco relacionada com programas sociais e políticas públicas, o que reduz seu impacto. Também falta transparência e um compromisso com a publicação regular de relatórios de atividades. Esse cenário acaba de ser revelado por um estudo recém-concluído sobre as ações de investimento e apoio empresarial no Brasil, entre 2020 e 2023, para estimular a garantia da segurança alimentar e nutricional.
O estudo foi conduzido por um grupo de especialistas do Laboratório de Filantropia, Políticas Públicas e Desenvolvimento do Pensi Social, que integra o Instituto Pensi, frente de Ensino e Pesquisa da Fundação José Luiz Egydio Setúbal. Entre janeiro e setembro de 2024, foram analisadas as ações de filantropia das 150 maiores empresas dos setores de agronegócio, alimentos e bebidas e comércio varejista, áreas que estão em relação direta com a cadeia de alimento. Todos os dados reunidos estão reunidos no relatório “Investimento e apoio empresariais para garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil 2020-2023” e estão disponibilizados de forma aberta no site do Laboratório (clique aqui para acessar o texto completo).
Dentre as empresas selecionadas com base no ranking das 1000 maiores do país do jornal Valor Econômico em 2023, apenas 98 realizaram ao menos uma ação diretamente relacionada ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2, que estabelece o compromisso de acabar com a fome, garantir segurança alimentar e nutricional e promover a agricultura sustentável até 2030. Os ODS foram criados em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU) e adotados por 193 países com o propósito de promover o desenvolvimento sustentável, erradicar a pobreza e proteger o planeta.
As 98 empresas identificadas foram responsáveis pelo financiamento ou apoio de 681 ações mapeadas e analisadas na pesquisa. As demais 52 empresas não apresentaram nenhuma ação diretamente relacionada ao ODS 2 ou não disponibilizaram relatórios de atividades correspondentes ao período estudado. A equipe de pesquisadores trabalhou somente com informações extraídas de relatórios de atividades e de sustentabilidade produzidos pelas próprias empresas.
A maioria das iniciativas (69,31%) foi classificada como projetos — ações de menor escala, de curta duração, geralmente com objetivos específicos e apelo publicitário, como a doação de alimentos. Apenas 17,33% foram caracterizadas como programas, ou seja, definidos por sua escala ampliada, continuidade no tempo, planejamento estruturado e foco em resultados a médio e longo prazos. Cerca de 15% das ações analisadas foram respostas à pandemia de Covid-19 ou a desastres naturais, indicando uma forte resposta a situações emergenciais.
Empresas preferiram ações para melhorar imagem
Considerando que cada ação poderia estar relacionada a mais de um elo da cadeia do alimento, cerca de metade ocorreu nos elos de produção de alimentos (47,58%) e consumo (53,30%), indicando uma forte priorização das pontas da cadeia alimentar. A maioria das iniciativas focou na produção agrícola ou pecuária — como na criação de hortas, capacitações de trabalhadores do campo e práticas agroecológicas — e na entrega direta de alimentos. A partir desses dados, foi possível observar que etapas intermediárias da cadeia de alimentos, como transporte (0,44%), armazenamento (1,62%), processamento (2,64%) e varejo/atacado (1,32%), foram alvo de pouquíssimas ações.
Na prática, essas etapas intermediárias são bastante críticas para o combate à Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN), pois concentram grande parte das perdas de alimentos por ineficiência técnica (como o manejo inadequado no campo, embalagens impróprias, superlotação no transporte, estradas precárias e falhas no armazenamento).
Assim, a falta de iniciativas que abordem tais problemas configura uma omissão que prejudica o enfrentamento estrutural da fome no país. A integração de toda a cadeia alimentar — inclusive logística, estocagem e distribuição — é essencial para garantir o acesso contínuo, qualificado e sustentável aos alimentos.
Baixo investimento nas organizações
Os dados obtidos indicam que as empresas preferem terceirizar as ações e quase não investem na manutenção e fortalecimento das organizações da sociedade civil (OSCs) atuantes em segurança alimentar. Das 681 ações analisadas, 27 (3,96%) ofereceram algum aporte financeiro ou técnico, sendo apenas 16 (2,35%) irrestritos. Isso acontece porque muitas empresas preferem apoiar ações pontuais e visíveis, como a distribuição de alimentos, que trazem mais retorno para sua imagem pública. Já manter uma OSC funcionando exige um tipo de apoio menos atrativo do ponto de vista da visibilidade, porém mais duradouro e necessário. Quando realizado, esse tipo de apoio normalmente acontece com OSCs grandes e reconhecidas nacionalmente, não ocorrendo com entidades menores, mas com mais capilaridade.
O ideal seria equilibrar os dois tipos de apoio: manter ações práticas e pontuais, mas também investir na capacidade das organizações que estão na linha de frente, garantindo resultados mais sustentáveis e efetivos no combate à IAN. Quando o financiamento se concentra apenas em ações específicas, as OSCs acabam adaptando seus projetos para atender às expectativas dos patrocinadores, o que nem sempre atende às prioridades do combate à fome.
As ações empresariais voltadas à segurança alimentar de 2020 a 2023 beneficiaram de forma limitada os grupos com maior risco de IAN. Das 681 iniciativas, apenas 126 (18,5%) focaram populações demográficas específicas (mulheres, negros, indígenas, ribeirinhos, pessoas em situação de rua, idosos, comunidades tradicionais). Outras 148 ações (21,7%) foram destinadas a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, revelando que menos de um quinto das ações priorizou os grupos com maior risco de insegurança alimentar e nutricional (IAN).
Além disso, parcela significativa das empresas (responsáveis por quase 60% das ações) não determinou claramente o público beneficiado ou adotou um recorte genérico, sem dar prioridade aos grupos mais vulneráveis. Viu-se também uma concentração territorial nas regiões Sudeste e Sul, onde a maioria das companhias possui sedes. Das 98 companhias, 84 realizaram ao menos uma ação no estado onde têm uma sede, e cerca de 52% das iniciativas ocorreram nos Estados onde as matrizes estão localizadas. Isso acentua a exclusão das regiões Norte e Nordeste, onde se concentram os maiores índices proporcionais de IAN.
Considerando as partes interessadas (ou stakeholders) das empresas, 30,98% das ações envolveram comunidades do entorno das empresas, 8,08% envolveram clientes/consumidores, geralmente atuando como cofinanciadores em campanhas promovidas por varejistas, Apenas 3,08% envolveram trabalhadores internos das empresas. Já cooperados e fornecedores foram envolvidos em 31,72% das ações normalmente ligadas a melhorias de processos e produtos, principalmente visando certificações da cadeia. Isso mostra que o investimento social empresarial ainda está fortemente orientado por lógicas de proximidade e benefício corporativo, com menor aderência a um compromisso estruturante relacionado aos grupos mais afetados pela IAN.
Mais transparência e maior compromisso
De modo geral, a filantropia empresarial — especialmente no contexto da expansão da agenda ESG e da filantropia corporativa — ainda tem recebido pouca atenção de acadêmicos, formuladores de políticas públicas e da sociedade civil. Nesse sentido, ao identificar padrões e contradições, este estudo preenche uma lacuna e contribui para ampliar o debate público sobre as responsabilidades empresariais na garantia do direito humano à alimentação adequada. Mais do que apontar falhas, a pesquisa oferece uma base concreta para o aprimoramento das estratégias privadas, reforçando a necessidade de compromissos mais estruturantes, transparentes e alinhados com os desafios reais da fome no Brasil.
A busca e análise dos relatórios de sustentabilidade e das ações empresariais entre 2020 e 2023 revelou um cenário de baixa transparência por parte de grandes empresas dos setores de alimentos e bebidas, agronegócio e comércio varejista. Um dos problemas mais evidentes foi a falta de continuidade na publicação de relatórios, com períodos intercalados e lacunas significativas. Isso contraria diretamente o ODS 12.6 da ONU, que incentiva empresas, sobretudo as grandes e transnacionais, a integrar informações de sustentabilidade em seus relatórios.
Além da irregularidade nas publicações, muitos documentos careciam de dados básicos como a natureza das ações, os atores envolvidos, as localidades atendidas, os públicos-alvo, os orçamentos empregados, os resultados esperados e obtidos e as parcerias firmadas. Essa escassez de informações dificulta qualquer análise mais profunda sobre o planejamento, a execução e os impactos das ações relacionadas à segurança alimentar e nutricional.
A dificuldade de acesso a informações claras se estende à ausência de métricas e monitoramento. A maior parte das ações não apresentou mecanismos de avaliação de impacto, o que compromete a análise externa e o aprendizado interno das próprias empresas. Outro aspecto a ser criticado é a falta de auditoria independente. Quando há auditoria, ela tende a ser feita voltada aos interesses da própria empresa e não para as partes interessadas, o que compromete a credibilidade e impede avaliações isentas. Casos de greenwashing e social washing também foram identificados — ações apresentadas como inovadoras e transformadoras que, a rigor, cumprem apenas obrigações legais ou repetem ações comuns, como a proteção de nascentes e margens de rios. Em síntese, a falta de relatórios completos, auditáveis e transparentes representa um obstáculo real para a mensuração do compromisso empresarial com a SSAN e com os princípios da responsabilidade socioambientais.
De modo geral, para que o investimento social empresarial tenha impacto efetivo no enfrentamento da insegurança alimentar, será necessário superar a lógica promocional ou emergencial e adotar compromissos consistentes, com foco em continuidade, escala e transformação estrutural. Isso implica em fortalecer organizações locais, distribuir melhor os recursos entre regiões e públicos prioritários, bem como integrar todas as etapas da cadeia alimentar nas ações de investimento social.
Apesar dos avanços, persistem desafios, como a necessidade de maior atenção a grupos com maior chance de exposição à IAN, e a continuidade e estruturação das ações, para que sejam mais robustas e eficientes. O fortalecimento de iniciativas de longa duração e a integração das iniciativas ao contexto de sustentabilidade empresarial (ESG), igualmente, são caminhos promissores para maximizar os resultados e alinhar os interesses e responsabilidades do setor privado às demandas sociais.