O avanço das tecnologias digitais impulsionou a desinformação a patamares sem precedentes nos últimos anos, com efeito similar ao de um vírus. Nesse contexto, o anúncio recente feito pela empresa Meta, de remover programas de checagem de fatos, acrescenta a esse problema novos contornos sociais, econômicos e psíquicos, com impacto direto a grupos vulneráveis e minorizados, como as mulheres. A ausência de moderação de conteúdo amplifica a desordem informacional e, assim, favorece a misoginia em rede – a propagação de discursos de ódio, aversão, intimidação e assédio contra mulheres nas plataformas digitais.
Conforme aponta o relatório Deplatforming Misogyny, publicado pelo Fundo de Educação e Ação Jurídica das Mulheres (LEAF), o ambiente digital é um grande facilitador da violência de gênero. Por meio da rede, são disseminadas práticas como doxxing (exposição de dados pessoais e confidenciais), perseguição, trolling (humilhações e constrangimentos), além de campanhas coordenadas de assédio e distribuição de imagens íntimas sem consentimento. A situação é tão alarmante que, segundo um estudo da União Europeia, 62% das mulheres já foram alvo de desinformação ou assédio on-line, resultando em danos emocionais e exclusão de espaços digitais.
Alguns dos alvos principais são mulheres em posições de destaque, como políticas e profissionais da imprensa, ou pertencentes a minorias raciais e sociais. O Report on Online Harassment, da Anistia Internacional, aponta que essas mulheres são desproporcionalmente afetadas por campanhas de desinformação que buscam silenciá-las e desacreditá-las publicamente, muitas vezes por meio de imagens manipuladas e discursos de ódio.
No Brasil, o Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais identificou 137 canais misóginos no Youtube, entre 2018 a 2024, que promoviam ataques direcionados principalmente às “feministas”, “mães solteiras” e “mulheres mais velhas”. Segundo a pesquisa, esse movimento se intensificou a partir de 2022, aliado a teorias conspiratórias prejudiciais à igualdade de gênero e a narrativas masculinistas, que promovem comportamentos nocivos às mulheres disfarçados de valorização dos homens. Não à toa, em 2022 o país alcançou número recorde de ataques às mulheres na internet, segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) e a Safernet. O ano acumulou 28,6 mil denúncias – um salto quase 30 vezes maior do que as 961 registradas em 2017.
O problema escalonou ainda mais nas eleições de 2024. Uma análise dos comentários em conteúdos sobre debates eleitorais revelou que as candidatas sofreram três vezes mais ataques diretos e violentos do que os candidatos homens, segundo o MonitorA, observatório de violência política de gênero. Entre as ofensas, eram comuns discursos de inferiorização, misoginia e etarismo. Segundo o relatório da Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (ACLED), esses casos vêm aumentando globalmente e, desde 2020, o Brasil figura entre os 10 países mais violentos para mulheres na política. Muitas vezes coordenados e sistemáticos, esses ataques são estratégicos para minar a credibilidade feminina na política, questionando sua competência ou integridade por meio de informações falsas.
A articulação dessas narrativas ocorre, com frequência, na manosfera – um conjunto de espaços digitais que apoiam e amplificam discursos misóginos, homofóbicos e de valorização da masculinidade. Esses grupos costumam recorrer a estratégias de desinformação e, agora, contam com um novo recurso: a deep fake, técnica que usa a Inteligência Artificial para criar imagens e vídeos falsos, cada vez mais próximos da realidade. Esse recurso tem sido amplamente usado para simular conteúdos pornográficos, os deep nudes, dos quais mais de 90% são pornografias não consensuais com mulheres e que as expõem a situações humilhantes, com graves consequências psicológicas e sociais.
Regime de Desinformação
É preciso lembrar que as grandes empresas de tecnologia, como a Meta, operam dentro de uma lógica lucrativa de plataformização do mercado e das relações interpessoais. Trata-se de um sistema que compete pela atenção e, ao mesmo tempo, extrai dados dos usuários, que geram lucro.
Essa dinâmica promove, por meio de algoritmos, a segmentação de conteúdos em bolhas informacionais pautadas em interesses. E, como o engajamento é monetizado, são favorecidos conteúdos virais, mesmo que enganosos. Isso já foi denunciado, por exemplo, no caso das empresas que lucram com a disseminação de desinformação em saúde para promover a venda de soluções milagrosas e remédios falsos.
Portanto, a desinformação nesse contexto é projetada com intencionalidade de atingir alvos específicos, reforçando narrativas e comportamentos prejudiciais. Assim, essas empresas vêm se especializando em prever e modificar o comportamento humano como forma de controle do mercado. O anúncio de aliança entre a Meta e o governo de Donald Trump evidencia como essa dinâmica pode ser explorada para promover agendas políticas e contaminar o debate público com ideais extremistas.
Checagem dos fatos x liberdade de expressão
Ao flexibilizar a moderação de conteúdo, a empresa alega defender a liberdade de expressão. No entanto, a prática sugere um alinhamento com interesses da extrema direita, ao invés de uma preocupação com a garantia da diversidade humana e das liberdades individuais.
No Brasil, a liberdade de expressão, prevista na Constituição, não é um direito absoluto e está sujeita a limites legais para garantir o respeito à dignidade humana. Não à toa, o Código Penal brasileiro tipifica esses limites, como, por exemplo, nos casos de injúria, difamação e calúnia, além da Lei de Crimes Raciais (7.716/89) e dos crimes cibernéticos, para práticas cometidas no meio digital.
Inclusive, a falta de checagem de fatos não torna as mídias sociais livres de interferências. A moderação de conteúdo já ocorre, mas sem transparência e, muitas vezes, alinhada a interesses comerciais e políticos. Desse modo, a postura da Meta reforça a visão deturpada de que a internet deveria ser uma terra sem lei, além de evidenciar que o mercado não é capaz de se autorregular.
Um relatório das Nações Unidas destaca a necessidade urgente de um Código de Conduta para orientar Estados e empresas de tecnologia sobre integridade da informação nas plataformas digitais. Assim como as leis de trânsito existem para assegurar um tráfego seguro nas ruas, as redes também precisam, com urgência, de medidas regulatórias democráticas, elaboradas por especialistas, para garantir um ambiente digital seguro.
Conclusão: regulação e educação informacional
As novas diretrizes da Meta enfraquecem o combate à desinformação e ampliam a violência de gênero, ao potencializarem discursos que estigmatizam e objetificam o corpo feminino, negando-lhe sua condição mais básica: a humana. Esse cenário reacende debates sobre as implicações éticas, sociais e jurídicas da atmosfera digital, um ambiente propício à disseminação de discursos de ódio.
Portanto, as rápidas mudanças do atual regime informacional e seus impactos tornam urgente a regulação democrática das plataformas digitais. É preciso responsabilizar e criminalizar a produção e a disseminação da desinformação que, diariamente, compromete vidas e culturas. Nesse processo, a atuação das agências de checagem é fundamental para identificar e desmentir conteúdos falsos ou fora de contexto. Mas, acima de tudo, é indispensável investir em programas de alfabetização, letramento e educação midiática e informacional. Só assim será possível proteger a integridade da informação e dos indivíduos.