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Fome e clima: desperdício de alimentos gera emissão de metano, conecta crises globais e precisa ser medido

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Fome e clima: desperdício de alimentos gera emissão de metano, conecta crises globais e precisa ser medido

Todos os anos, 46 milhões de toneladas de alimentos – quase um terço de tudo o que o Brasil produz – desaparecem ao longo da cadeia ou acabam no lixo. É como se 10.500 caminhões coletores lotados descarregassem diariamente sua carga em aterros sanitários, volume que seria suficiente para garantir três refeições diárias, por um ano, a 63 milhões de brasileiros.

O panorama brasileiro segue desafiador, ainda que o país tenha saído mais uma vez, após seis anos, do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 2025, de acordo com relatório da própria organização, e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD/IBGE) indicar avanços no acesso a alimentos. No triênio 2022-2024, somos cerca de 28,5 milhões de brasileiros vivendo em domicílios com insegurança alimentar moderada ou grave, ou seja, em situações nas quais a quantidade e a regularidade das refeições ficam comprometidas.

Dados da FAO mostram que, globalmente, 13,2% de tudo o que sai do campo se perde logo após a colheita. A região da América Latina e Caribe, que abriga 9% da população mundial, representa 20% das perdas globais.

Agrava ainda mais essa situação o fato de que a perda de alimentos pesa no clima: de 8 % a 10 % das emissões globais de Gases de Efeito Estufa (GEE) são provenientes desse desperdício – quase cinco vezes o impacto da aviação comercial. Cada quilo jogado fora leva água, terra e energia – e na decomposição libera metano (CH4), GEE até 28 vezes mais potente que o CO₂. Segundo a ONU e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), reduzir esse desperdício pela metade pouparia 4% das emissões agrícolas mundiais e afastaria 153 milhões de pessoas da fome.

Todo esse problema dialoga diretamente com três Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: ODS 2 (Fome Zero), o ODS 9 (Indústria, Inovação e Infraestrutura) e, sobretudo, o ODS 12, que trata de Consumo e Produção Responsáveis, incluindo a meta 12.3 de reduzir pela metade as perdas e o desperdício de alimentos até 2030. Os ODSs são uma agenda global da ONU com 17 diretrizes e 169 metas para enfrentar desafios sociais, econômicos e ambientais até 2030.

O mapa do desperdício

Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, o desperdício começa cedo – falta tecnologia de manejo, estocagem e logística adequada. Frutas e hortaliças lideram o ranking nacional: 40 % a 50 % da produção se perdem antes de chegar ao consumidor, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Mesmo em cenários conservadores, traçados pelo Ministério da Agricultura, as perdas superam 22% nas etapas pré-varejo. Além disso, o país também exibe padrões de desperdício típicos de nações ricas, no varejo e no consumo final.

O elo mais capaz de virar esse jogo é a indústria de processamento. Situada no centro da cadeia, ela enxerga padrões de consumo à jusante (distribuição e venda para o varejo e consumidor final) e dificuldades de produtores e fornecedores à montante (como o fornecimento de matéria-prima), detendo poder de barganha para exigir práticas mais eficientes.

Com isso em mente, o Laboratório de Estratégia, Governança e Filantropia para Transições Sustentáveis do Instituto Pensi (Fundação José Luiz Setúbal – FJLS uniu-se à rede All4Food e desenvolveu uma nova edição do Radar All4Food de Combate a Perdas e Desperdícios de Alimentos, o Radar PDA. Trata-se de um instrumento técnico para avaliar e ranquear boas práticas empresariais contra o desperdício a partir de relatórios de sustentabilidade. Seu propósito é estimular a transparência, engajar empresas e apoiar metas de consumo e produção sustentáveis. A rede All4Food, criada em 2020, é uma coalizão que une pesquisadores de diferentes universidades e centros de pesquisa, empresas e startups para inovar nos sistemas alimentares, com foco em sustentabilidade e redução de desperdícios. A FJLS atua na promoção da saúde infantil no Brasil, por meio de pesquisa, educação, advocacy e atendimento especializado, buscando um modelo integral de cuidado para crianças e adolescentes.

A metodologia para o Radar PDA partiu de uma revisão sistemática da literatura científica, filtrou 32 práticas essenciais e validou a importância de cada uma em duas rodadas com 36 especialistas. As práticas foram agrupadas em sete categorias (relação com fornecedores, gestão interna, processos, produto e embalagem, tratamento interno de resíduos, relação a jusante e cadeia de valor e outros stakeholders). Cada prática recebeu notas de zero a 3, conforme a empresa informou (ou não) evidência auditável em seu Relatório de Sustentabilidade. A pontuação foi ponderada pela relevância e somada.

Em uma primeira rodada, o Radar PDA avaliou 19 empresas processadoras de alimentos. Somente 68% atingiram entre 25% e 50% da pontuação total possível no ranking de ações. A média geral alcançada foi de apenas 46% dessa pontuação. Mais grave: nenhuma das empresas avaliadas incluiu, em seus relatórios, metas aderentes ao ODS 12.3, que estabelece a redução, pela metade, do desperdício per capita no varejo e entre consumidores, bem como ao longo das cadeias de produção, inclusive no pós-colheita. Todos os dados e conclusões desse estudo estão disponíveis no relatório Radar All4Food de Combate a Perdas e Desperdícios de Alimentos: Análise das práticas de sustentabilidade reportadas por empresas do ramo de alimentos.

De fato, embora os estragos comecem cedo, as respostas corporativas concentram-se na ponta final da cadeia, como constatou recentemente um levantamento do Instituto Pensi (FJLS) que mapeou ações de combate à insegurança alimentar declaradas por 150 grandes empresas dos setores de agronegócio, alimentos e bebidas e comércio varejista. O estudo mostrou que 53,3% das 681 ações informadas estavam focadas em doações ou campanhas de consumo; 47,6 % destinavam-se ao varejo e 2,6 % ao processamento industrial. Somente 0,44 % miravam a produção, transporte ou logística. Essa incoerência se dá numa cadeia que movimenta R$ 1,28 trilhão ao ano, responde por 10,8 % do PIB e emprega 2,1 milhões de pessoas.

Por que é urgente mensurar as nossas perdas

Instituir indicadores padronizados para transparência no tema, como os do Radar PDA, permite que organizações da sociedade civil acompanhem, investidores condicionem recursos e governos calibrem incentivos ou sanções. Quando metas claras constam do relatório de sustentabilidade, verifica-se se a companhia reduz perdas, corta metano e impede que a escassez encareça a comida. É um passo para a justiça climática, pois as populações que menos poluem, mas sofrem primeiro com preços altos e dietas pobres, ganham respaldo numérico para exigir mudanças. Portanto, Transparência, por essa perspectiva, deixa de ser adorno ESG e ganha relevância como um requisito para que sociedade, investidores e governos cobrem resultados.

Vale lembrar que a urgência por um maior engajamento das empresas no combate ao desperdício cresce às vésperas da 30ª cúpula do clima da ONU, a COP 30, a se realizar no mês de novembro em Belém do Pará, que revisará metas climáticas e de segurança alimentar. Cada avanço de eficiência na cadeia significa menos emissão de metano, menor pressão por novas áreas agrícolas e mais alimento no prato das crianças. Combater perdas e desperdício não é só logística: é política industrial de baixo carbono e política pública de saúde infantil reunidas no mesmo pacote de sustentabilidade ambiental e humana.

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