O pontificado de Francisco, iniciado em 2013, marcou uma guinada sem precedentes na história recente da Igreja Católica. Primeiro papa jesuíta, primeiro latino-americano e primeiro pontífice vindo do atualmente denominado “Sul Global”, Jorge Mario Bergoglio assumiu o comando de uma instituição em crise profunda — abalada por escândalos de abusos sexuais e corrupção financeira — e propôs uma agenda de reforma centrada na compaixão, na justiça social e na proximidade com os marginalizados.
Sua célebre frase nos primeiros dias de pontificado — o sonho de uma “Igreja pobre com e para os pobres” — ressoou fortemente no Brasil, país com a maior população católica do mundo. Em meio a desigualdades sociais estruturais e crises políticas recorrentes, a proposta de Francisco encontrou eco entre movimentos sociais, comunidades eclesiais de base e lideranças pastorais comprometidas com os mais vulneráveis.
O papa argentino se opôs explicitamente ao clericalismo e aos luxos eclesiásticos, recusando o Palácio Apostólico, agora lacrado, como residência e preferindo viver na Casa Santa Marta, dentro do Vaticano, em condições simples.
No Brasil, essa postura teve impacto simbólico sobre a hierarquia e sobre os fiéis, reavivando debates sobre a coerência entre fé e prática social. Sua liderança fortaleceu a dimensão profética da Igreja no país, inspirando iniciativas voltadas à população de rua, povos indígenas, quilombolas e migrantes.
A relação de Francisco com o Brasil foi marcada por um início emblemático: a Jornada Mundial da Juventude de 2013, no Rio de Janeiro. Ali, o Papa discursou no morro da Varginha, uma das comunidades mais vulneráveis da cidade, criticando a exclusão e chamando os jovens a serem protagonistas de mudança social. Esse gesto antecipava sua visão de uma Igreja que “vai às periferias”, não apenas geográficas, mas existenciais.
Outro ponto central foi sua atuação em defesa da Amazônia. A encíclica ‘Laudato Si’ (2015) representou um marco no magistério ecológico da Igreja, ao denunciar a destruição ambiental como consequência da lógica de lucro e exploração predatória. No Brasil, suas palavras deram impulso ao Sínodo da Amazônia (2019), que debateu a realidade dos povos originários e o papel das comunidades locais na proteção do bioma. O documento final recomendou maior valorização da cultura amazônica, da participação das mulheres e de um modelo de desenvolvimento sustentável.
Francisco também foi voz ativa em relação à crise migratória. Em julho de 2013, viajou à ilha italiana de Lampedusa para denunciar a “globalização da indiferença”. No Brasil, sua posição encontrou consonância com iniciativas como a Missão Paz e o trabalho da Cáritas, que atuam com imigrantes e refugiados.
No campo dos direitos humanos, Francisco se distanciou de posições tradicionalistas. Ao defender a dignidade dos LGBTQI+, abrir espaço para a comunhão de divorciados e revisar a doutrina da pena de morte, o papa confrontou setores conservadores. No Brasil, essas mudanças causaram tensões, mas também acolhimento por parte de setores pastorais progressistas e movimentos como a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT.
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Sua crítica à desigualdade econômica também é relevante para o contexto brasileiro. Em vários discursos, Francisco denunciou o “capitalismo selvagem” e defendeu um modelo econômico baseado na solidariedade e justiça distributiva. Essa mensagem dialoga com a luta contra a fome no país.
Apesar de sua popularidade mundial, o Papa Francisco enfrentou forte resistência interna, especialmente ao tentar enfrentar os escândalos de abuso sexual clerical. Embora tenha promovido mudanças importantes, como a cúpula de 2019 com líderes de todas as conferências episcopais e novas normas canônicas, seu posicionamento inicial diante das denúncias no Chile — quando defendeu um bispo acusado e chamou os sobreviventes de caluniadores — gerou forte reação e críticas internacionais. Só depois de intensa pressão, Francisco reconheceu publicamente seu erro:“Fui parte do problema”, escreveu em carta aos fiéis chilenos. Sua capacidade de admitir falhas – algo inusual neste âmbito – reforçou sua imagem pastoral e sua insistência de que o papado é um serviço, não um trono de poder.
Com sua morte, Francisco deixa um legado inacabado. Sua tentativa de reconstruir a Igreja a partir da humildade, do encontro e da justiça ressoa com especial força no Brasil. Mais do que reformas doutrinárias, ele plantou uma espiritualidade encarnada, que inspira comunidades a seguir construindo uma fé viva, crítica e comprometida com os excluídos.