Considerados “guardiões” por ocuparem espaços do Cerrado de forma sustentável com pequenos roçados, criação de gado “solto” na mata e extrativismo, muitos dos chamados povos e comunidades tradicionais desse bioma tiveram suas vidas abaladas por conflitos fundiários motivados pela expansão da fronteira agrícola brasileira.
A cerca 300 quilômetros do centro de Balsas (MA), um dos epicentros do agronegócio do país no extremo sul maranhense, a Agência Brasil acompanhou representantes de famílias do Vão do Uruçu a encontrarem, pela primeira vez, uma advogada para discutir a situação fundiária que afeta as comunidades rurais.
Mais de 20 famílias de posseiros estão sendo pressionadas a aceitarem acordos para reduzir a área em que trabalham a 50 hectares – ou irem embora. As famílias acreditam que o grupo que tenta “tomar” suas terras são grileiros que pretendem repassar os terrenos para produção de soja.
“A gente vive coagido”, diz agricultor
A paisagem no Vão do Uruçu ainda preserva porções do Cerrado nativo e abriga as nascentes do Rio Balsas, com altas serras pedregosas e enormes lavouras de monocultura em volta.
O clima era de apreensão entre os moradores reunidos naquela manhã quente de outubro, no final do período seco. Mas era também de certa esperança por, quem sabe, conseguir ajuda, uma vez que ninguém poderia pagar pela defesa dos seus interesses na Justiça.
Visivelmente nervoso com a situação, o posseiro Osmar Paulo da Silva Santos, pai de 10 filhos, tem 65 anos e vive de pequenos roçados e criação de animais. Ele diz que não tem mais paz desde que começou a ser pressionado.
“Ave Maria, foi o desassossego maior que nós já tivemos. Antes desse povo chegar por aqui, nós todos vivíamos sossegados e tranquilos. E hoje a gente vive tão coagido por causa deles, que hoje a gente não tem mais como se virar”, lamentou o posseiro, admitindo que já pensou em abandonar tudo.
O modo de vida dos povos e comunidades tradicionais do Cerrado e o controle sobre o território que esses exercem tem sido considerado, por pesquisadores, ambientalistas e pelo governo federal, como fundamental para proteção de áreas do bioma que favoreçam a “recarga” dos rios e nascentes que vem secando ao longo das décadas.
O agricultor Salmon Leite Almeida, de 68 anos, lamentou que o gado está passando fome por causa de um recente incêndio nas redondezas, que queimou o pasto que servia de alimento. Ele diz que não pode aceitar ficar em 50 hectares: “eu crio gado solto, não tem como criar gado solto em 50 hectares”.
“Eles querem essa terra para vender, não para plantar ou trabalhar a terra”, acrescentou Salmon.
Nenhum dos posseiros tem documentos dos territórios, apesar de a ocuparem há décadas.
A advogada Rosane Ibiapino, do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos, ligado à Diocese de Balsas, explicou que esses posseiros têm direito à terra devido a lei do usucapião, que concede o direito à propriedade para quem ocupa a terra de forma prolongada, contínua e pacífica.
“Há mais de quatro décadas exercendo posse mansa e pacífica, essas famílias ocuparam a área, construíram suas casas, formaram suas famílias. Isso lhes garante o direito à posse e usufruto da área. Elas viviam isoladas há até bem pouco tempo”.
Maranhão, líder em conflitos agrários
O Maranhão foi o estado que mais registrou conflitos por terra ou água no Brasil em 2024, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização que acompanha e produz dados sobre o tema em todo o país. Foram 420 conflitos no ano passado, afetando 103 mil pessoas. O Pará, o segundo com os maiores índices, registrou 314 conflitos em 2024.
O juiz aposentado Jorge Moreno, que atualmente dirige o Comitê de Solidariedade à Luta pela Terra (Comsulote), afirma que o Maranhão vive uma situação de conflitos generalizados.
“Não existe um município do Maranhão, dos 217, que não esteja sofrendo algum tipo de violência, de assédio, de intimidação e de ameaça e muitos deles de assassinato mesmo de camponeses. A situação é muito grave”, diz.
Tiros disparados e derrubada de pontes
Enquanto aguardavam o almoço de galinha caipira servido pelo anfitrião do encontro, os moradores do Vão do Uruçu relataram as ameaças veladas que têm sofrido por meio de disparos de armas de fogo próximo às residências. Osmar afirma que uma tábua com pregos foi instalada na entrada das comunidades para furar os pneus das motos dos moradores.
“Nós ‘tem’ corrido medo de uma bala variada acertar na gente. Lá em casa, são acostumados a ‘fazer fogo’ [efetuar disparos] para me amedrontar, só pode ser isso. Tem dia que a gente escuta as balas passarem zunindo por cima de casa. Por que eles não atiram para o outro rumo? Eles só atiram pro ‘rumo’ de casa!”.
Ao todo, o Maranhão registrou 65 casos de violência contra pessoas em 2024 devido a conflitos por terra ou por água. Desses casos, houve um assassinato, uma tentativa de assassinato e 51 ameaças de mortes, segundo estatísticas da CPT.
Os posseiros contam que a empresária Sheila Lustosa Parrião apareceu na região, em 2020, cobrando por essas terras. Ela seria uma das herdeiras de um antigo proprietário da região, o Lauro Castilho, que nunca tinha produzido no Vão do Uruçu, mantendo até então um latifúndio improdutivo, segundo documentos do Cartório de Registro de Imóveis de Balsas a que a reportagem teve acesso.
Original de Palmas, Sheila se apresenta, em aplicativo de mensagens, como representante da empresa Castelo Construtora, Incorporadora e Reflorestadora (Cacir Agro), com sede em Goiânia (GO), mas com uma filial em Balsas.
A produção da reportagem entrou em contato com a empresária. Porém, após informar que passaria o caso para o setor jurídico, Sheila não mais respondeu aos pedidos de manifestação sobre as denúncias dos posseiros.
Em 2023, o Ministério Público do Maranhão a acusou por mandar os funcionários derrubarem uma ponte pública que ligava comunidades no Vão do Uruçu.
“Em virtude do ocorrido, a Polícia Militar foi acionada, de modo que, ao chegar ao local, constatou a veracidade das informações. Os moradores relataram, ainda, que são constantes os disparos de arma de fogo na propriedade da denunciada, com o objetivo de intimidar os moradores da região”, afirma documento do MPMA.
No cartório de Balsas, o terreno em disputa está registrado no nome da empresa Penitente Empreendimentos e Participações, com sede no mesmo imóvel da Cacir Agro, que é a empresa que Sheila representaria. A diferença é que a Penitente estaria na sala nº 15 e a Cacir na sala de nº 6 do mesmo endereço no bairro Jardim Goiás, em Goiânia.
Ambas as companhias foram registradas no nome do empresário Ricardo Rocha Lima Paranhos, segundo banco de dados do Ministério da Fazenda. Nossa produção tentou contato com as duas companhias por meio dos e-mails e telefones indicados nos registros das empresas, mas não obteve qualquer retorno.
O registro do imóvel indica que a Penitente Empreendimentos comprou a área em disputa no Vão do Uruçu em março de 2022 por R$ 2,5 milhões. No momento da compra, a empresa se chamava Azner Participações, já tendo mudado de nome duas vezes desde a compra.
O imóvel rural tem uma hipoteca em nome da Bunge Alimentos, uma das quatro maiores companhias de alimentos do mundo, com sede na Holanda.
Procurada, a Bunge se limitou a dizer que não mantém “relações comerciais” com a empresa Penitente, mas não respondeu à pergunta da reportagem sobre o motivo da hipoteca ter usado como garantia o imóvel alvo do conflito no Vão do Uruçu.
O imóvel é colocado como garantia do financiamento da Bunge com o empresário Alzir Pimentel Aguiar Neto, vice-presidente da Associação Brasileira de Produtores de Soja do Piauí (Aprosoja-PI). Nossa produção procurou a Aprosoja-PI e o Alzir para comentar o caso, mas não obteve retorno.
Agrotóxicos no ar
A pulverização aérea de agrotóxico é outra reclamação constante das comunidades tradicionais de Gerais de Balsas. Elas alegam que o uso do “veneno” lançado por aviões contamina o solo, as águas e prejudica a saúde dos moradores.
Após percorrer outros 30 km de estrada de terra em meio a serras e plantações de soja ou milho, a reportagem visitou outra comunidade no chamado Vão do Uruçuí, no Médio Gerais de Balsas.
Segundo contam os moradores, antes da chegada do agronegócio, se levava até três dias no lombo de um animal para chegar à sede do município, a cerca de 100 quilômetros da comunidade Boa Esperança, onde vivem 40 pessoas por meio da agricultura de subsistência e prestando serviços às fazendas da região.
No caminho de terra, foi possível observar áreas recém-desmatadas. Os montes de raízes do Cerrado (fundamentais para infiltrar água da chuva em aquíferos subterrâneos) em cima do solo denunciam o desmatamento recente da área aberta para plantação de soja.
Os agricultores Fábio Soares Sousa, de 67 anos, e Raimunda Pereira de Carvalho, de 53 anos, são pais de 10 filhos e receberam a equipe com um farto almoço à base de arroz, feijão, macarrão, carne e farinha de mandioca. Eles vivem em residências de taipa e cozinham em fogão à lenha. A energia elétrica chegou na comunidade há cerca de quatro anos.
Apesar de destacarem os benefícios do agro, como a abertura de estradas que hoje permitem chegar ao centro de Balsas em duas horas de carro, a família lamenta o uso intensivo de agrotóxico e o desmatamento que prejudica as nascentes e cursos d’água.
“Não devia poder avião jogar agrotóxico aqui em cima da gente mora. A soja está na beira dos Vãos, dos baixões, e tem que passar o veneno na soja toda, aí [o avião] vai fazer o retorno aqui por cima das casas, aí o vento vem todinho [trazendo o agrotóxico]”, afirma o agricultor.
Fábio e Raimunda afirmam que a pulverização aérea prejudica a saúde da família, além de responsabilizar a soja pela redução do volume de água.
“As crianças se sentem muito mal e a gripe se renova sempre. Além disso, o brejo [nome dado na região para riachos] está morrendo por falta de água. Antigamente, quando íamos pegar buriti dentro do brejo, era atolando água no meio da canela. Agora, está tudo seco”, lamentou Raimunda.
Dados do Ministério da Saúde apontam para uma média de 1,9 mil intoxicações por agrotóxico por mês em todo o país. Em Balsas (MA), entre 2018 e 2023, o número de intoxicações girou em torno de dez por ano. Em 2024, esse total quase triplicou, chegando a 27 intoxicações por agrotóxicos notificadas.
Miúdo e sua grande determinação
Conhecido como Miúdo por causa da sua baixa estatura, o camponês Fábio Soares Sousa conta que seu avô já vivia nessas terras ainda no final do século 19.
Cercado por fazendas em todos os lados, Miúdo reclama que tomaram dele cerca de 150 hectares para plantação de soja. O caso está na Justiça e ele tem poucas esperanças de retomar a área.
Apesar de nunca ter frequentado a escola, aprendeu a ler e escrever e tem amplo conhecimento das plantas, frutos e animais do Cerrado. Além da agricultura familiar, a comunidade vive da extração de frutos típicos do bioma para produção de polpa, como pequi, buriti, bacaba, buritirana e bacuri. “A polpa do bacuri está caríssima, R$ 38,00 o quilo”, revelou.
O trabalhador rural insiste que jamais vai deixar sua comunidade, apesar dos apelos dos fazendeiros da região para que venda sua propriedade.
“Dizem que estou velho e devo morar na cidade, perto dos serviços de saúde. Mas gosto de morar na roça. Enquanto estiver vivo não saio da aqui”.
Governo do Maranhão
Com objetivo de reverter o histórico do Maranhão como estado, ao lado do Pará, com mais conflitos agrários do país, o governo estadual adotou a regularização fundiária como um dos quatro eixos prioritários do atual mandato e lançou, em 2023, o Programa Paz no Campo.
Segundo o presidente do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), Anderson Pires Ferreira, o programa já entregou 18 mil títulos de propriedade, beneficiando 22 mil famílias, além de regularizar 27 comunidades quilombolas.
Além disso, o Iterma informou que foram registradas 300 mil hectares de terras “devolutas”, que são áreas públicas ainda sem destinação. O presidente do Instituto de Terras destacou ainda o combate à grilagem.
“Já foram mais de 150 mil hectares de terras griladas retomadas para o patrimônio do Estado, tendo sido feito todo o procedimento de cancelamento de matrícula”, acrescentou.
Anderson Ferreira acredita que esse trabalho vai contribuir para reduzir o número de conflitos no campo no Maranhão. “É o governo que mais entregou títulos na história do Maranhão. Dessa forma, cada um tendo o que é da sua posse, a gente pacifica o estado”, destacou.
Ao mesmo tempo, Ferreira reconhece que a expansão da agropecuária dentro do Cerrado tem ampliado a quantidade de conflitos fundiários.
“À medida em que a agropecuária vai se expandindo, aparecem essas matrículas frágeis que não têm geolocalização. Quanto mais aumentam as áreas de produção, mais essas áreas vão encontrar posseiros, agricultores familiares e comunidades tradicionais”.
Ferreira lembrou que o Maranhão tem problemas fundiários seculares, e que a resolução desses conflitos depende de diversos órgãos do Estado, incluindo o Judiciário. Ele destacou ainda que não houve regularização quando as terras passaram da Coroa para a República.
“Após a Constituição de 88, o Estado se depara com inúmeras matrículas muito frágeis nos cartórios de registro, sem geolocalização. Ainda não existia georreferenciamento, que começou a partir dos anos 2000”, disse. O georreferenciamento é o processo de mapear a localização exata de um imóvel usando, entre outros instrumentos, os satélites.
Por último, o presidente do Iterma, Anderson Ferreira, defendeu que a regularização fundiária é fundamental para a preservação ambiental. “Sem regularizar o território, não tem como você manter a floresta de pé”, finalizou.
Série especial
Esta reportagem é a primeira da série especial Fronteira Cerrado, que investiga como o avanço do agro no bioma está afetando os recursos hídricos do país. Até quarta-feira serão publicados novos conteúdos – acompanhe!
A produção dessa série foi viabilizada a partir da Seleção de Reportagens Nádia Franco, iniciativa da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que destinou R$ 200 mil para o custeio de conteúdos especiais produzidos por jornalistas da empresa. De 54 projetos inscritos, oito foram selecionados por um conselho editorial.
A jornalista Nádia Franco era editora da Agência Brasil e dedicou 49 anos à comunicação pública. Ela faleceu em agosto de 2025.
O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) custeou as passagens áreas da equipe até Imperatriz (MA).
*Produção de Beatriz Evaristo
