A expressão gentrificação nasceu do termo inglês “gentrification”, cunhado por Ruth Glass, em 1963, para esclarecer o repovoamento, por famílias de classe média, que vinha acontecendo em bairros desvalorizados de Londres na década de 1960, levando à transformação do perfil dos moradores.
Atualmente, usa-se a expressão gentrificação como resultado dos projetos de “revitalização”, “recuperação” ou “requalificação” de locais degradados a partir de iniciativas públicas e privadas.
Há alguns anos, publiquei um artigo intitulado “A gentrificação não é um efeito colateral: complexificando o conceito para revelar objetivos escusos”, no qual abordo a temática da “revitalização” ou de “renovação urbana”, implementadas em inúmeras cidades do mundo. Os resultados desses processos têm gerado o que os pesquisadores denominaram de gentrificação. Entretanto, há intenso debate acerca do termo, alguns criticando seu uso indiscriminado e outros acreditando ser necessário complexificá-lo. Para mim, a gentrificação não é um efeito colateral ou uma catástrofe natural; a gentrificação é planejada.
Trata-se de um fenômeno multidimensional, que reúne modernização e deslocamento; refere-se à modernização de antigos prédios associada ao desenvolvimento de atividades culturais em determinadas áreas residenciais. A questão é que, após o investimento em infraestrutura, há maior valorização do lugar; assim, observa-se que os antigos moradores não resistem ao encarecimento do local, tendo que buscar outra área com custo de vida mais baixo.
A gentrificação se materializa no lugar, mas há inúmeros agentes por trás desse processo e, inclusive, um projeto de cidade. Por isso, partimos do que se apresenta enquanto formas construídas, mas é preciso investigar o que está por trás delas e que projetos de mundo lhes dão sustentação.
Gentrificação residencial e de consumo
Se inicialmente a gentrificação ligava-se ao mercado residencial, o enobrecimento dos lugares acabou incorporando áreas de lazer com complexos culturais voltados também para o turismo. O geógrafo belga Mathieu Van Criekingen define dois tipos de gentrificação – residencial e de consumo – que levam à produção glamourizada do espaço por meio da sofisticação dos ambientes.
A mídia exerce papel ao promover esses locais, ajudando a criar um discurso hegemônico acerca do lugar, que contribui para a atração de consumidores. Os profissionais de publicidade contratados têm papel importante, pois elaboram discursos que dão sustentação aos projetos propostos.
Para Neil Smith, a gentrificação não é um movimento de retorno das pessoas à cidade, mas do capital. Como dizem os especuladores: “business is business”.
Vivemos uma intensa mercadificação do espaço, e esse processo ocorre a partir de relações de poder desiguais, como entre a indústria da construção e as classes mais pobres de inquilinos.
Na sociedade capitalista, a moradia não é pensada com o objetivo de atender às necessidades habitacionais de quem precisa, já que é vista como mercadoria, devendo gerar retorno econômico. Quando uma empresa compra um terreno ou constrói um imóvel, aposta que, com a futura venda ou aluguel, conseguirá um retorno vantajoso.
É preciso perceber que a degradação de bairros, o abandono de prédios, de antigos armazéns ou galpões e até o aumento da criminalidade são também parte estratégica do sistema capitalista de produção do espaço.
E tudo isso é planejado, pois os investidores precisam ter certeza de que a mudança de imagem do bairro atrairá a classe média para lá viver ou frequentar os novos bares, cafés, restaurantes e lojas.
As três fases da gentrificação
A forma clássica da gentrificação passa por três fases, embora nem sempre siga esse caminho. Na primeira fase, jovens sem condições de pagar aluguéis elevados procuram localidades com imóveis em pior estado ou mais baratos. Muitas vezes, esses locais permitem o surgimento de empreendimentos “criativos”, como ateliês, festas informais, bares com características diferenciadas.
Essas mudanças levam à segunda fase: a alteração da percepção do bairro. Essa mudança é descrita por Lisa Vollmer como a transformação da imagem do bairro de pobre e perigoso para jovem e interessante. Jornais e revistas passam a destacar os eventos e atrativos do local.
As obras de infraestrutura e de embelezamento promovidas pelos governos também são fundamentais; cumprem o papel de incentivar os empresários, mostrando que seus investimentos são seguros.
A terceira fase corresponde à transição do capital cultural para o capital econômico. Os promotores imobiliários utilizam a mídia para “vender” a nova imagem do bairro e os proprietários aumentam os aluguéis. Essa transformação leva à expulsão da população antiga, que não consegue arcar com os novos custos. A população antiga não se beneficia da melhoria das condições de vida do local.
Ocorre então o que chamamos de banalização do espaço, quando projetos urbanos se repetem mundo afora. O que deu certo em uma cidade é reproduzido em outras, gerando insatisfação dos antigos moradores.
A gentrificação não está mais restrita ao centro das grandes metrópoles. Estende-se a outros bairros e também a cidades menores. É um processo global. O movimento levou os autores Rowland Atkinson e Gary Bridge a chamarem de novo colonialismo urbano.
Dependendo do tipo de construção planejada, é possível prever o aumento do preço do metro quadrado e, consequentemente, dos aluguéis. Os novos moradores, com renda mais alta, demandarão serviços diferentes, o que leva ao surgimento de novas lojas e comércios, substituindo o comércio local tradicional.
O modelo Airbnb
Outro fator relevante é que o aumento dos preços fomentado pelas novas construções também eleva os aluguéis de imóveis antigos – reformados e convertidos em apartamentos para aluguel de curta duração. Isso contribui para a expulsão dos antigos moradores.
O investimento em novas construções – se não vier acompanhado de políticas para garantir a permanência da população original – pode sim promover a gentrificação. Forma-se um ciclo vicioso: novos prédios atraem restaurantes mais caros, cafeterias e butiques, que sinalizam aos investidores que vale a pena investir naquele local, dificultando ainda mais a permanência dos antigos moradores.
O crescimento de apartamentos para aluguel de curta duração, como no modelo do Airbnb, transforma o espaço público e a estrutura comercial dos bairros. As mudanças visam atender aos hábitos dos turistas, não às necessidades dos moradores originais. Isso tem gerado insatisfação em cidades de vários países, como Espanha, Portugal e Itália. Não é possível dissociar a gentrificação do processo de turistificação.
Essa é uma nova forma de gentrificação: os antigos moradores não são substituídos por novos residentes, mas por turistas temporários, que demandam serviços e comércios diferentes. Imóveis são convertidos ao uso turístico, o que reduz a oferta de moradia permanente e encarece os aluguéis.
Outro ponto importante: quando políticas públicas priorizam atrair turistas, elas favorecem um público que não se preocupa com o bairro, não reivindica melhorias e não está interessado na preservação do ambiente. A turistificação é paradoxal: ao tornar-se objeto do turismo de massa, a cidade se torna uma mercadoria. Há uma mercadificação do espaço.
Os empreendedores “vendem” as cidades, copiando o que funcionou em outros lugares. Isso gera uma homogeneização das paisagens urbanas, o que é paradoxal: destrói-se justamente o que era atrativo – o diferente. Isso é o que chamo de banalização do espaço, ou, em outras palavras, de uma urbanização banalizada.
Esta pesquisa foi financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).