O primeiro caso de H5N1 registrado ontem, numa granja comercial no Brasil, no município de Montenegro (RS), marca uma nova fase de potencial surto no Brasil. Até então, os casos haviam sido limitados à fauna silvestre. Agora, com o registro do vírus na avicultura comercial, o país enfrentará o desafio permanente de preservar sua reputação sanitária internacional e conter a disseminação para outras granjas, mantendo o controle da cadeia produtiva.
Imagine um vírus silencioso veiculado por aves migratórias na costa brasileira. Em poucas semanas, ele poderá atravessar fazendas, mercados e fronteiras, e afetar a pecuária, o agronegócio e a saúde pública. Este é o risco concreto do “spillover zoonótico”, quando um vírus salta de animais para humanos. E o Brasil, com sua imensa biodiversidade, produção agropecuária e comércio (legal e ilegal) de animais silvestres, é um dos países com potencial de exposição a esse tipo de ameaça.
Em 2023 e 2024, o surto de gripe aviária H5N1 foi um teste real para a capacidade de resposta do país a doenças zoonóticas. O Governo Brasileiro reagiu rápido para proteger a indústria avícola, mas revelou falhas preocupantes na coordenação com a saúde pública e o meio ambiente. Por que isso importa? Porque novas pandemias podem começar exatamente em interfaces mal monitoradas entre humanos e animais. Entender como o Brasil respondeu ao surto de H5N1 e onde melhorar, será crucial para fortalecer a preparação para futuras crises sanitárias.
H5N1: Um vírus perigoso, mesmo que pouco transmissível entre humanos
O vírus influenza aviária H5N1 é uma cepa altamente patogênica, ou seja, causa doença grave em aves e tem alta taxa de mortalidade. Ele circula principalmente em aves silvestres, como as migratórias, que funcionam como reservatórios naturais. O maior perigo ocorre quando essas aves entram em contato com criações domésticas e/ou comerciais, disseminando o vírus entre galinhas, patos e outras espécies de criação.
Embora a transmissão para humanos seja rara, ela pode acontecer, especialmente quando há contato direto com aves infectadas. Casos humanos registrados globalmente costumam ter alta letalidade. Ainda assim, o H5N1 não apresenta transmissão sustentada entre humanos, o que impede que ele se torne uma pandemia, ao menos por enquanto. O risco está na possibilidade de o vírus sofrer mutações ou recombinações com outras cepas, o que pode eventualmente aumentar a capacidade de transmissão entre pessoas.
No caso do Brasil, o risco econômico é concreto. Somos o maior exportador mundial de carne de frango, responsável por mais de 30% das exportações globais. Só nos oito primeiros meses de 2024, o setor gerou quase US$ 6 bilhões em receita. Uma contaminação em granjas comerciais, ainda que isolada, poderá levar à suspensão imediata de exportações, fechamento de fronteiras e destruição de estoques, com impactos profundos nos preços internos e na renda de produtores e da cadeia alimentar.
Além disso, como a cadeia produtiva funciona com baixo armazenamento e giro rápido, qualquer interrupção gera excedente de carne e ovos, derrubando preços no mercado doméstico, o que poderá desorganizar o setor, por consequência, afetar a segurança alimentar.
A Organização Mundial de Saúde Animal definia o Brasil com status de “livre de influenza aviária de alta patogenicidade em aves comerciais”, um tipo de certificado sanitário que permite o comércio internacional de produtos avícolas. Perder esse status, mesmo que temporariamente, pode causar embargos comerciais, mesmo sem casos em humanos. Ou seja, manter esse reconhecimento internacional é muito importante para as exportações e segurança alimentar.
Como o Brasil respondeu: aos avanços e as novas ameaças
Em maio de 2023, ocorreu uma detecção do vírus no Brasil em aves migratórias no Espírito Santo. A resposta do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) naquele momento foi rápida. Decretou emergência zoossanitária por 180 dias, ampliou testagens, ativou planos de contingência e liberou R$ 200 milhões para medidas de controle.
Até janeiro de 2024, foram registrados 168 casos do vírus da gripe aviária de alta gravidade (conhecida como HPAI), principalmente em estados litorâneos como Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Bahia e Rio Grande do Sul. A maioria dos casos ocorreu em aves silvestres, especialmente espécies como trinta-réis-de-bando e trinta-réis-real. Apenas dois casos foram registrados em aves de fundo de quintal, mas nenhum em granjas comerciais. Apesar da expansão geográfica, os focos foram rapidamente contidos, e o Brasil manteve o status sanitário de país livre HPAI em aves comerciais, o que evitou sanções comerciais mais severas, até agora.
Agora, em maio de 2025, o cenário mudou. O primeiro caso de H5N1 foi registrado em uma granja comercial, localizada no município de Montenegro (RS). Imediatamente após a confirmação, a China suspendeu a compra de carne de frango brasileira por 60 dias. A medida reforça como mesmo um único foco pode abalar a confiança internacional, com impactos diretos sobre um setor responsável por mais de 30% das exportações globais de frango.
O MAPA reforçou que o consumo de carne de aves e ovos permanece seguro, já que o vírus não é transmitido por alimentos cozidos. A área afetada foi isolada, as aves eliminadas e um raio de 10 km passou a ser monitorado pela Secretaria de Agricultura do Estado.
Enquanto o setor agropecuário tem mobilizado rapidamente suas estruturas, o Ministério da Saúde tem tido uma participação mais tímida. Somente em dezembro de 2024 foi lançado um Plano Nacional de Contingência. Já o Instituto Butantan, antecipando riscos desde 2022, tem investido no desenvolvimento de uma vacina humana contra o H5N1.
Por sua vez, o Ministério do Meio Ambiente tem estado relativamente ausente na resposta coordenada, apesar da importância da atuação da vigilância da fauna silvestre e da regulação dos mercados de animais. Essa desconexão reforça a urgência de implementar uma estratégia de “Uma Só Saúde” (One Health) no país, articulando os três setores — saúde, agropecuária e meio ambiente — para evitar que surtos zoonóticos se tornem crises sanitárias e econômicas.
Mais do que um conceito, Uma Só Saúde deve se tornar uma política concreta, com estruturas permanentes, recursos estáveis e ação coordenada. O Brasil tem a chance, e a responsabilidade, de liderar uma abordagem integrada que reconheça que proteger a saúde humana começa muito antes do hospital, começa nas florestas, nas feiras, nas granjas e nas políticas públicas que os conectam.