Em 1994, quando ocorreu a epidemia de gripe aviária na China, começou-se a responsabilizar as galinhas, culpa rapidamente transmitida às aves selvagens migratórias. Porém, foi preciso concluir que as aves selvagens não se amontoam aos milhares em pequenos espaços. De fato, as protagonistas do episódio eram as galinhas. No entanto, o que a mídia não conseguiu enxergar e não abordou desde então é o papel das condições socioambientais na disseminação das doenças coletivas, sejam elas humanas ou animais.
Reunidas e protegidas por embalagens congeladas, milhares de galinhas podem voar em um avião, e, em menos de 24 horas, desembarcarem prontas para o consumo, em qualquer lugar do planeta. Nenhuma ave selvagem seria capaz de tal proeza. De qualquer modo, simplesmente acusar as aves migratórias pela peste é sempre cômodo e transfere eventuais responsabilizações humanas diretamente para a Natureza.
No mundo globalizado, a velocidade dos meios de transporte e da mídia compõe o contexto no qual se dá tanto a disseminação das doenças quanto a divulgação dos seus dados. Outro elemento importante são as condições do comércio – especialmente o transporte e a venda ilegais de mercadorias – que também podem ajudar a compreender a marcha das doenças coletivas.
No passado, uma reunião de condições sociais e higiênicas precárias, guerra comercial e meios de transporte esteve no centro das epidemias, que, proporcionais à velocidade justamente dos transportes, se espalharam sobre regiões maiores ou menores do planeta. Ao falar de tais meios, a atenção se volta de imediato para o transporte de homens e mercadorias, que, sem o devido controle sanitário, também respondem pela disseminação de agentes patógenos por todo o planeta.
Por outro lado, as doenças se atualizam. No passado, cabia falar de fronteiras nacionais. Mas, em um mundo global, estas tornaram-se cada vez mais abstratas. Assim, após trafegar por vários países, em 2006, a gripe aviária chegou aos Estados Unidos, o maior produtor de frangos do mundo. Pela ótica das autoridades sanitárias americanas, parecia ser uma ameaça letal não só para as aves, mas também para a espécie humana.
Como se pode ver, a espécie humana não se acabou, nem mesmo foi muito atingida, como demonstram as magras estatísticas de mortalidade humana por gripe aviária da OMS (Organização Mundial de Saúde), que registrou apenas 15 mortes entre 2020 e 2025. As grandes questões foram, de fato, o efeito cascata e a alta do preço do frango nos mercados globais.
Quanto ao animais, dados publicados recentemente informam que, em 2022, as cepas de alta patogenicidade do vírus H5N1 foram associadas à morte de 141 milhões de aves — domésticas e selvagens — em 85 países e territórios.
Enchentes e biossegurança
Depois de muitos giros pelo mundo, atravessando criadouros industriais de aves e, eventualmente, atingindo seres humanos, a gripe aviária chegou ao Brasil, pela primeira vez, em 15 de maio de 2023. Atingiu apenas aves silvestres, de acordo com o comunicado oficial do governo brasileiro.
Com relação aos criadouros, além do risco de infecção por aves silvestres, eles requerem condições de biossegurança que não se limitam apenas àquelas referentes às aves (como higiene, vacinação, ventilação, afastamento, alimentação, pois incluem ainda a transmissão do vírus para as aves por meio de seres humanos infectados. Esta última possibilidade aumentou muito entre abril e maio de 2024, quando ocorreram grandes enchentes no Rio Grande do Sul.
Em meio à destruição que se seguiu, as condições de vida se degradaram para as aves domésticas e selvagens, bem como para os seres humanos. Assim, não seria estranho pensar em uma queda também na biossegurança dos criadouros industriais de aves. O fato é que, poucos meses depois, em julho de 2024, nos criadouros industriais do município gaúcho de Anta Gorda, reaparece outra patologia aviária de risco, a doença de Newcastle, da qual não havia casos no estado desde 2006.
Na sequência, em 15 de maio de 2025, quando o vírus da gripe aviária já circulava há dois anos em diferentes regiões do Brasil, o Rio Grande do Sul ainda se recuperava das enchentes históricas de 2024, que impactaram 478 das 497 cidades gaúchas e afetaram diretamente cerca de 2,5 milhões de habitantes.
Curiosamente, nesta data o governo reconheceu a presença de gripe aviária em um criadouro industrial, pela primeira vez no país, por meio da portaria do Ministério da Agricultura que declara estado de emergência zoossanitária no município gaúcho de Montenegro.
No plano do comércio internacional, tal notícia não podia ser pior para o Rio Grande do Sul. Embora o risco de transmissão da gripe aviária para humanos seja considerado baixo, e o consumo de carne de aves e ovos cozidos, seguro, apenas passadas 24 horas do comunicado oficial, demonstrando a velocidade das operações comerciais e a força da mídia, seguiu-se uma avalanche de matérias jornalísticas e ordens de cancelamento de compra das aves brasileiras, inclusive por parte do maior cliente: a China.
O elo entre biologia, economia e mídia
Em paralelo, especificamente quanto às doenças coletivas, é sabido desde a Peste de Atenas, no século V a.C. – a primeira epidemia registrada em detalhes no mundo ocidental – que um problema maior do que a doença em si é o pânico que ela instala. Aqui, cabe apenas lembrar a força que as fake news podem ter durante epidemias.
Ele informava também sobre uma máxima já antiga em sua época: “Um dia a guerra virá, e com ela a peste.” Tudo isto no meio de uma guerra comercial – que, em seguida, transforma-se em conflito armado – travada entre as grandes potências gregas de então, Atenas e Esparta, pelo controle dos mares.
Hoje, duas das maiores potências mundiais, Estados Unidos e China, estão em uma guerra comercial declarada, as quais vêm a ser o maior produtor de frango e o maior importador, respectivamente. No meio dessa guerra, está o Brasil, que, em 2022, foi o segundo maior produtor e o maior exportador de carne de frango do mundo.
Na gripe aviária, como nas doenças coletivas em geral, biologia e economia aparecem intimamente ligadas. Os valores envolvidos estão longe de serem modestos. O mercado global de frango movimentou cerca de 300 bilhões de dólares em 2022, e deve movimentar cerca de 430 bilhões de dólares em 2028.
Do mundo antigo também procede a narrativa de que Fama era uma deusa de mil bocas. No mundo moderno, embora despida de seu caráter mítico, ela torna-se soberana com suas mil bocas atualizadas a cada minuto, convertendo-se na mídia. Esta, na corrida pela dianteira da informação, com sua força ampliada no espaço-tempo, é capaz de contribuir tanto para a informação quanto para a desinformação.
Em resultado, hoje, muitas vezes torna-se bastante difícil perceber a real dimensão de problemas complexos, como as questões de saúde, que já surgem soterrados pela massa ininterrupta de informações de vários matizes – verdadeiras, falsas, contraditórias, incompletas, confusas, tendenciosas etc.
Assim, apesar da forte cobertura jornalística dada à gripe aviária no Rio Grande do Sul, a mídia preferiu minimizar ou não se aprofundar no estudo da coincidência da gripe aviária e da doença de Newcastle terem surgido em municípios gaúchos, Montenegro e Anta Gorda, duramente atingidos pelas devastadoras enchentes de maio de 2024. O que se observa é que, de modo geral, a mídia não se interessou em ligar os pontos e discutir a determinação social da doença.
Antes, seguindo uma lógica do espetáculo, o espaço privilegiado foi dado à reprodução das listas de países que embargaram a compra do frango brasileiro ou das declarações das autoridades. Vendo as listas de suspensão de compra, restaram aos agricultores a dúvida e as dívidas.
Por ocasião das enchentes no Rio Grande do Sul, o Papa enviou uma benção para a população gaúcha, orando para a rápida reconstrução dos locais atingidos. Há também, no campo da fé, o místico período de 28 dias que, segundo antigas crenças lunares e modernos conhecimentos científicos solares, deve ser observado para decretar o fim da gripe aviária. Porém, de fato, tal como os ratos de Camus, a peste retornará se as condições de vida e trabalho não forem melhoradas.