Quando pensamos na guerra tarifária em que o Brasil está hoje envolvido, é difícil desconsiderar o aspecto de interferência sobre a nossa disputa política local. Todos vimos a menção a uma suposta caça às bruxas sofrida por Jair Bolsonaro na famosa carta de Donald Trump, e a posterior chantagem promovida pelos políticos bolsonaristas oferecendo negociação comercial com os EUA em troca de anistia.
O calor e o ruído desse debate nos fazem esquecer o quanto a guerra comercial promovida pelo governo Trump é coerente com o programa econômico da nova direita populista americana. De fato, um diagnóstico (e talvez um verdadeiro sentimento) desse grupo é que os EUA seriam sistematicamente prejudicados em suas relações internacionais – seja por terem que arcar desproporcionalmente com o custo da OTAN, seja por ofertarem os “ativos de reserva” (o dólar e os Treasury bonds) do sistema financeiro mundial, seja por sempre terem adotado baixas tarifas de importação diante de parceiros comerciais protecionistas.
Essas últimas duas dimensões, financeira e comercial, teriam uma íntima conexão, constituindo o que os economistas chamam de “mundo de Triffin” (nome dado em homenagem ao economista belga Robert Triffin). Segundo o famoso relatório redigido por Stephen Miran, atual presidente do Conselho de Consultores Econômicos (CEA) do Gabinete da Presidência dos EUA, existiria uma crescente demanda mundial pelo dólar e pelos títulos do Tesouro americanos. Essa demanda não seria regida por fundamentos normais como risco e retorno de ativos, e seria ademais turbinada por bancos centrais estrangeiros interessados em construir reservas em dólar e em manter as moedas dos seus respectivos países desvalorizadas em relação ao dólar.
A consequência de um dólar sistematicamente supervalorizado seria o déficit comercial dos EUA, prejudicando especialmente o setor manufatureiro onde se concentrariam bons empregos para o trabalhador americano médio. Daí também a decadência de regiões inteiras dos EUA, como o Cinturão da Ferrugem, e mazelas como as Mortes por Desespero.
Miran enxerga uma série de ganhos com a imposição de tarifas pelos EUA: aumento de arrecadação do governo, queda nos preços internacionais (sem levar em conta a tarifa) dos bens importados, redirecionamento da demanda interna americana para a indústria doméstica, etc.
Os custos, por outro lado, seriam apenas um baixo impacto na inflação americana, e uma pequena valorização do dólar – que deveria ser compensada pelo FED através de juros mais baixos (a partir daí também podemos compreender as pressões de Trump sobre Jerome Powell).
Contudo, há um conjunto de evidências que lança dúvidas tanto sobre o diagnóstico quanto sobre a receita de Miran. Segundo Michael Bordo e Robert McCauley, nós não viveríamos mais num “mundo de Triffin”: comparando a década de 2000 com hoje em dia, o déficit comercial americano caiu de um patamar de 4% para 2,8% do PIB. No mesmo período, as reservas oficiais de países estrangeiros teriam caído de 40% para 16% do passivo do tesouro americano em poder do público (isto é, fora do FED).
Em defesa da tese de Miran, é preciso reconhecer que nesse período o dólar se valorizou (apreciou) contra a maioria das outras moedas. Mas também é verdade que isso não se refletiu num déficit comercial (ou em conta corrente) maior dos EUA.
Quanto aos impactos do aumento de tarifas de importação, Pablo Fajgelbaum e coautores analisaram um episódio anterior da guerra comercial, ainda durante o primeiro mandato de Trump, chegando às seguintes conclusões: os preços internacionais dos produtos alvejados pelas tarifas americanas não caíram, de modo que o custo da tarifa foi integralmente transferido para os consumidores americanos. Computando as perdas dos consumidores junto com o ganho de arrecadação e o ganho para os produtores domésticos de bens substitutos das importações, o impacto líquido agregado do episódio foi economicamente insignificante, com uma perda da ordem de 0,04% do PIB americano.
Talvez o aspecto mais importante tenha sido a distribuição setorial e geográfica das tarifas americanas e das estrangeiras que também subiram em retaliação: enquanto as primeiras incidiram mais sobre produtos fabricados em condados eleitoralmente competitivos (com maior equilíbrio entre votos pró-Republicanos e pró-Democratas), as retaliações atingiram mais as commodities agrícolas produzidas em regiões de maioria eleitoral republicana.
Novamente em defesa de Miran, é preciso relembrar que as simulações de impacto feitas por Fajgelbaum e coautores foram baseadas no episódio de 2018, quando os aumentos de tarifas foram menores e mais localizados (contra apenas alguns parceiros comerciais, como a China) que a nova rodada de 2025. Mas o próprio Miran deve ser forçado a concordar que o modus operandi das novas imposições de tarifas (com voltas atrás, e “grandes novidades” anunciadas quase que diariamente) não tem sido favorável a nenhuma das economias envolvidas.
Ao contrário do mundo dos blogueiros de extrema direita, o mundo da economia real, e particularmente o do comércio internacional, não é beneficiado por instabilidade e imprevisibilidade. Ao redor do mundo, há mercadorias apodrecendo e enferrujando nos portos. O preço do suco de laranja subiu 9% nos EUA.