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Hiperconectados: a frágil fronteira entre o uso excessivo e a dependência digital patológica

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Hiperconectados: a frágil fronteira entre o uso excessivo e a dependência digital patológica

O The Conversation Brasil publica regularmente artigos em parceria com a revista FCW Cultura Científica, da Fundação Conrado Wessel, instituição de fomento à divulgação científica brasileira e uma de nossas apoiadoras. A primeira série de artigos, inciada em março, trata da ansiedade, um dos temas de saúde pública mais preocupantes da atualidade, e que por isso mesmo tem sido objeto de numerosos estudos.

A dependência digital é considerada um dos principais desafios para a saúde mental nos dias atuais. O uso constante de redes sociais e dispositivos digitais ativa regiões do cérebro ligadas ao sistema de recompensa – o mesmo circuito envolvido em vícios como o álcool e outras drogas. Embora não exija a ingestão de substâncias químicas, essa forma de dependência atua de maneira semelhante, instigando a liberação de neurotransmissores (como dopamina, serotonina e endorfinas), associados ao prazer e à sensação de bem-estar.

Em alguns casos, o excesso de estímulos funciona como um gatilho que pode deflagrar a dependência. Nessas situações, o cérebro passa a pedir cada vez mais recompensas rápidas. Isso pode atrapalhar a atenção, o sono e o equilíbrio emocional, afeta o autocontrole e aumenta a ansiedade.

Mas como diferenciar o uso excessivo das mídias digitais, seja por lazer ou trabalho, da dependência patológica dessas tecnologias, a chamada nomofobia? Essa é uma avaliação que não pode se basear somente na quantidade de horas passadas nas redes sociais, pois a simples contagem de tempo não é suficiente para identificar uma dependência. Na verdade, essa diferenciação exige uma análise criteriosa, realizada por profissionais especializados em psicologia e psiquiatria.

Sensações preexistentes

Um dos aspectos a serem considerados é que a dependência digital está ligada às características de cada indivíduo, de maneira semelhante ao que ocorre com dependências químicas. Se uma pessoa tem baixa autoestima, poucas habilidades sociais e necessidade de autoafirmação, ela pode buscar nas redes sociais elogios e apoio para suas opiniões. Da mesma forma, se a pessoa possui um transtorno emocional, o uso das tecnologias digitais pode acentuar um problema que, de outra forma, talvez não se tornasse tão evidente.

A permanência excessiva nas redes sociais, portanto, pode agravar quadros já existentes. Em casos de depressão, por exemplo, a comparação frequente com a vida idealizada que é compartilhada nas redes pode aprofundar o sofrimento, especialmente quando o indivíduo se sente excluído ou inadequado. Por outro lado, se essa mesma pessoa encontra acolhimento na internet, como em grupos de apoio, pode experimentar uma melhora, pois se sente menos sozinha e mais pertencente a um coletivo. Dessa forma, os impactos da tecnologia variam de acordo com as características de cada pessoa, bem como com a interação e os estímulos por ela recebidos nas redes.

O mesmo raciocínio se aplica a outros tipos de dependência. Muitas pessoas conseguem consumir álcool sem desenvolver vício. No entanto, fatores como solidão, luto ou dificuldades emocionais podem fazer com que outros indivíduos busquem refúgio no álcool ou nas drogas. Assim também acontece com o uso da tecnologia digital.

Os jovens são particularmente vulneráveis aos estímulos das redes sociais, uma vez que a adolescência é uma fase de muitas inseguranças e transformações. As redes impõem padrões de aceitação que amplificam essa pressão, criando um ambiente propenso a críticas, comparações e bullying. Isso pode gerar reações emocionais intensas, como angústia, ansiedade e tristeza, e também influenciar comportamentos radicais. Se, no passado, as críticas se restringiam ao ambiente escolar, hoje elas acontecem a qualquer momento nas redes sociais, sem trégua.


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A cobrança por presença nas plataformas digitais muitas vezes resulta em sofrimento psicológico, pois o sentimento de pertencimento ao grupo passa a depender da validação online. O jovem que se afasta das redes pode se sentir desconectado, fora do grupo e incapaz de acompanhar as interações, agravando ainda mais sua angústia e ansiedade.

Em uma sociedade conectada, o uso excessivo de dispositivos digitais, especialmente por crianças e adolescentes, levanta preocupações sobre impactos no desenvolvimento neurológico e na saúde mental. Reconhecer e tratar essa questão é fundamental para evitar que a tecnologia, em vez de ferramenta de crescimento, se torne fonte de vulnerabilidade. Com as mídias sociais cada vez mais presentes – e cada vez mais cedo – o papel dos pais, cuidadores e educadores é decisivo. O jovem ainda imaturo do ponto de vista neurológico entra no mundo digital, é intensamente estimulado e, por conta da química cerebral, sente necessidade crescente de permanecer nesse ambiente.

A necessidade de educação digital

Muitas vezes, o uso excessivo das tecnologias é consequência da falta de orientação e de limites, e não necessariamente um caso de dependência. Em casa, considero que é fundamental estabelecer momentos adequados para o uso do celular e monitorar o que os jovens acessam e com quem conversam. A internet é uma porta aberta para um mundo repleto de diversidade. Para indivíduos despreparados, especialmente os mais jovens, é muito fácil cair em armadilhas com más intenções.

Se as restrições ao uso do celular em casa ou na escola desencadearem crises de ansiedade, é necessário realizar uma avaliação psicológica ou psiquiátrica para verificar se há um transtorno emocional associado que demanda atenção, ou se o mal-estar é apenas uma reação à imposição de regras.

Criado em 2013 e vinculado ao Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Instituto Delete, do qual sou fundadora, é um centro de referência em atendimento e pesquisa sobre saúde mental e uso problemático de tecnologias digitais. Concentra estudos, desenvolve metodologias específicas para avaliações clínicas e ações de orientação com foco na identificação e no manejo da dependência digital. O atendimento oferecido pelo Delete é essencial para distinguir o uso inadequado das tecnologias digitais de um transtorno emocional que demande cuidado específico. Durante a avaliação, é investigado se o comportamento resulta apenas da ausência de limites ou se há um quadro clínico mais complexo.

Com base nas nossas práticas e pesquisas, entendemos que não se trata de eliminar o acesso às tecnologias digitais, hoje cada vez mais integradas ao cotidiano e presentes em tarefas básicas que vão da comunicação aos serviços bancários e outras necessidades da vida diária. Nosso foco é promover o seu uso consciente através da educação digital. Ela é uma ferramenta poderosa para que crianças, jovens e adultos utilizem a tecnologia de forma equilibrada, aproveitando seus benefícios e evitando prejuízos à saúde mental.

O impacto global da dependência digital exige atenção urgente de profissionais de saúde, educadores, famílias e formuladores de políticas públicas. Ao transformar comportamentos cotidianos e afetar o bem-estar emocional, o uso excessivo das tecnologias desafia os limites da convivência saudável com o mundo digital. Compreender esse fenômeno é um passo essencial para enfrentá-lo.


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