Ela sabia do que ele era capaz. Quando o ex-companheiro forçou a porta e avançou em sua direção, o corpo não reagiu. Não gritou, não empurrou, não correu. Ficou imóvel, como uma pedra. Enquanto o estupro acontecia, a mente estava consciente tentando sobreviver ao que o corpo já não podia evitar. Dias depois, diante da delegada, ela ouviu a pergunta que tantas mulheres escutam: “Mas por que você não fez nada?” Foi então que percebeu que sua paralisia, uma resposta automática ao terror, conhecida como imobilidade tônica, seria mais um obstáculo na busca por justiça e proteção.
A descrição acima é fictícia, mas reflete uma realidade que se repete. Já ouviu a expressão “se fingir de morto”? Vários animais paralisam seus movimentos quando nas garras de um predador. O nome científico dessa paralisia total é imobilidade tônica. Na verdade, o animal não está “fingindo de morto” pois essa é uma reação involuntária desencadeada em situação de risco de morte iminente, sobre a qual o animal não tem controle.
Nossos grupos de pesquisa do Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento da Universidade Federal Fluminense, do Laboratório Integrado de Pesquisas sobre o Estresse e do Laboratório de Neurobiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro têm estudado a resposta de imobilidade tônica em pessoas diante de uma agressão como o abuso sexual e outros eventos traumáticos.
Somos um dos poucos grupos de pesquisa no mundo a estudar isso. A imobilidade tônica em humanos é um fenômeno biológico bem descrito mas ainda pouco divulgado e, em casos de estupro, pode ter implicações legais.
Um estupro a cada 6 minutos
Os dados mais atuais sobre violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes no Brasil são estarrecedores e representam o registro de um estupro a cada seis minutos durante todo o ano de 2023.
Por violência sexual entende-se qualquer ato que envolva contato sexual não-consentido, sendo este tentado ou consumado, ou qualquer ato que envolva o uso de coerção contra a sexualidade de outrem ( Art. 213 do Código Penal Brasileiro).
Vítimas de violência sexual podem apresentar vários sintomas físicos, como tensão muscular, problemas estomacais, sintomas emocionais, como medo, culpa e vergonha, além de psicológicos que incluem pesadelos e reações fóbicas a disparadores de lembranças do evento.
A observação deste conjunto de alterações a partir de uma pesquisa, datada da década de 70, que entrevistou 146 mulheres vítimas de estupro, levou à caracterização da síndrome do trauma de estupro.
A descrição desta síndrome foi uma das razões para o surgimento do diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT), postulado no Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM-III de 1980). Com o tempo, sua definição passou a incluir diferentes tipos de eventos traumáticos.
Hoje, o TEPT é caracterizado pela exposição direta ou indireta a situações que envolvem morte, lesão grave ou violência sexual, e o diagnóstico pode ser feito se sintomas como reviver o trauma, evitar lembranças associadas, apresentar pensamentos e emoções negativas e manter um estado de alerta e irritabilidade aumentados persistirem por mais de um mês.
Vale destacar que eventos potencialmente traumáticos são comuns. Mais de 80% da população brasileira já foi exposta a pelo menos um evento desse tipo. Entretanto, apenas uma minoria dessas pessoas desenvolve TEPT, mas nas vítimas de violência sexual a proporção pode chegar a 55%.
Imobilidade tônica
A imobilidade tônica é uma reação defensiva involuntária à percepção de morte iminente. É caracterizada por profunda inibição motora e analgesia, sem perda de consciência, e é reversível.
Há décadas, vários estudos identificaram e caracterizaram esta reação em diversas espécies não humanas. Observou-se que, apesar de ser uma reação drástica que provoca um grande desequilíbrio na fisiologia do organismo, a mesma pode aumentar as chances de sobrevivência, pois um predador pode desistir da presa inerte ou se afastar para rechaçar um outro predador. O afastamento do predador permite a reversão da paralisia e a fuga da presa.
Estudos iniciais em humanos identificaram semelhanças entre a imobilidade tônica descrita em animais não-humanos e a chamada “paralisia induzida por estupro” observada em mulheres vítimas de violência sexual. Foi desenvolvida uma escala específica para avaliar a imobilidade tônica, e estudos indicam que essa reação pode atingir até 70% das vítimas de violência sexual quando avaliada logo após o trauma.
O estudo pioneiro de 2011, conduzido pelo grupo da professora Eliane Volchan (UFRJ), foi o primeiro a registrar parâmetros psicofisiológicos da imobilidade tônica em humanos. Utilizando estabilometria e eletrocardiograma, os pesquisadores avaliaram pacientes com TEPT enquanto ouviam um áudio com a descrição do próprio trauma e preenchiam a Escala de Imobilidade Tônica.
Aqueles que apresentaram maiores escores na Escala de Imobilidade Tônica, mostraram redução nas oscilações corporais, indicando rigidez postural, além de aumento da frequência cardíaca e redução na modulação benigna da atividade cardíaca.
Esses achados demonstraram que a imobilidade tônica humana tem características semelhantes às observadas em animais e pode ser evocada pela revivescência do trauma.
Implicações na saúde física e mental de vítimas de abuso sexual
Entender a relação entre a resposta de imobilidade tônica e o desenvolvimento de TEPT tem sido um dos objetivos das pesquisas nesta área.
Uma das hipóteses seria a de que a imobilidade tônica poderia acentuar pensamentos negativos persistentes sobre a vivência do trauma, assim como sentimento de culpa e vergonha, por não reagir como o esperado para uma determinada situação.
Em uma situação de violência sexual, muitas pessoas esperariam que a vítima reagisse com resistência física, tentando lutar ou gritar durante o trauma. No entanto, a imobilidade tônica é uma resposta reflexa e involuntária. A pessoa não tem controle e não consegue expressar nenhum movimento ou vocalização por mais que deseje fazê-lo.
Assim, a pessoa fica consciente, passa por uma situação de intenso pavor, quer se mexer e gritar, mas se vê encarcerada no próprio corpo. Por não compreender a natureza involuntária dessa imobilidade, a vítima pode desenvolver sentimentos de culpa e até percepções erradas de conivência, já que ela não tinha qualquer possibilidade de controlar essa reação biológica.
Um estudo já demonstrou que a auto-culpabilização, além de injusta para a própria vítima, é bastante prejudicial pois pode contribuir para o aumento de emoções e pensamentos negativos a respeito de si mesma, dos outros ou do mundo e futuro, sintomas característicos para um diagnóstico de TEPT.
Outra hipótese levantada é a de que a própria resposta de imobilidade tônica em resposta a uma situação traumática poderia ser, por si só, um evento tão aversivo quanto o próprio trauma.
De acordo com essa hipótese, ao vivenciar um evento traumático e responder com imobilidade tônica, a própria resposta em si, apresentaria um conjunto de sintomas tão assustadores para a vítima que seriam capazes de levar ao desenvolvimento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
O equívoco
Outros aspectos importantes são as implicações legais e jurídicas a respeito, dado o desconhecimento desta reação, tanto por profissionais de saúde, da policia e da área jurídica.
A vítima passa por uma situação apavorante e depois fica muito desamparada e ainda sofre acusações muito equivocadas de consentimento. Em termos do que se considera uma agressão e abuso sexual, por desconhecimento, muitas vezes buscam-se somente vestígios de reações ativas de defesa da vítima em relação ao agressor como indício de resistência. Essa interpretação, porém, é injusta e cientificamente incorreta, pois desconsidera que, diante de uma ameaça extrema, o organismo pode apresentar uma paralisia involuntária e biologicamente determinada.
Nesses casos, a ausência de reação não expressa consentimento, mas sim a manifestação de um mecanismo biológico automático de defesa, e comum em situações de risco de morte, que é a imobilidade tônica.
Intervenções e tratamento
Nossos estudos têm mostrado a necessidade de implementação de estratégias que atenuem os fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais em situações de violência sexual. No que concerne à apresentação da resposta de imobilidade tônica nos casos de violência sexual é fundamental o rastreio dessa resposta em locais de atenção primária à vítima.
Além disso, é importante difundir os conhecimentos sobre a natureza reflexa e involuntária da resposta de imobilidade tônica para romper estigmas, aprimorar a escuta das vítimas e promover uma sociedade mais empática.
A psicoeducação, através da psicoterapia, pode contribuir para a redução de sentimento de culpa e vergonha que podem acompanhar essa resposta e que levam a um grande sofrimento psíquico e consequente agravamento de transtornos mentais, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
Esta pesquisa foi financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).