Imagem criada com Canva Pro para o Global Voices.
Em quatro dias, um vídeo publicado por um influenciador brasileiro no início de agosto alcançou mais de 26 milhões de visualizações, virou assunto on-line e off-line e trouxe um novo ângulo para a discussão sobre a regulamentação das plataformas de tecnologia no país. O assunto: crianças emulando o comportamento de adultos on-line e quem lucra com isso.
“Felca”, como Felipe Bressanim é conhecido na internet, tem 17,9 milhões de seguidores no Instagram, 6,8 milhões no TikTok e 6,2 milhões de inscritos em seu canal no YouTube. O vídeo “adultização” começa com um aviso de gatilho para conteúdo como abuso sexual infantil, pedofilia e sexualização precoce. Como definiu o canal de televisão Globo News , o termo é usado para descrever quando crianças e adolescentes são expostos prematuramente ao comportamento, às responsabilidades e às expectativas dos adultos.
No vídeo, o influenciador apresenta casos de indivíduos que costumam apresentar menores de idade em suas postagens. Um deles é o de uma mãe que vendeu vídeos e fotos explícitas de sua filha adolescente, no Telegram, depois que os seguidores solicitaram mais conteúdo dela, diz ele.
Outro é Hytalo Santos, um influenciador que tinha mais de 18 milhões de seguidores no Instagram, conhecido por gravar frequentemente conteúdo com crianças e adolescentes. Uma das garotas que ficou famosa em seu perfil apareceu pela primeira vez quando tinha 12 anos, de acordo com Felca. Ele afirma que, quanto mais o público se envolvia com ela, mais ela aparecia nos vídeos de Santos, em diversas situações: dançando, dormindo com o namorado menor de idade ou após a cirurgia de implante mamário. Agora com 17 anos, ela cresceu na frente de uma câmera e da internet.
Tanto ela quanto Santos, que já estava sob investigação do Ministério Público do Estado da Paraíba, tiveram suas contas suspensas pelo Instagram após o vídeo de Felca. Santos também foi preso sob a acusação de tráfico de pessoas e exploração de menores. Os pais de adolescentes e crianças que autorizaram suas aparições estão sendo investigados.
O teste
Para testar e mostrar como os algoritmos de mídia social ajudam os predadores a procurar conteúdo relacionado à pedofilia, Felca criou uma nova conta no Instagram. Ele pesquisou palavras-chave que achava que provavelmente eram usadas por esses tipos de indivíduos e “curtiu” o conteúdo aleatório que parecia, em suas palavras, “sugestivo”.
Ao rolar o feed depois disso, ele recebeu uma curadoria de vídeos com crianças realizando atividades comuns do dia a dia, como pular em uma piscina ou dançar, e seções de comentários repletas de usuários dizendo “link na biografia”, “troca no Telegram” — geralmente postados como GIFs, em vez de frases digitadas.
Ele caiu na malha do algoritmo P, ele foi para esses pedófilos, que tem algoritmo parecido. É assustador, porque eles pegam conteúdo que é inocente e transformam em ponto de troca. Você vê que todos os comentários são assim.
Como Felca mostrou, ao visitar esses perfis, você encontra links em suas biografias que levam a grupos do Telegram que compartilham conteúdo com crianças e adolescentes:
Tudo a céu aberto, tudo feito debaixo do nosso nariz. Será que é tão difícil para as plataformas buscar esse conteúdo, entender o que está acontecendo, punir essas pessoas que estão botando “link na bio?” Não teria como fazer com que essas contas não existam? Me parece fácil de fazer essa mudança.
Regulamentar ou não regulamentar, eis a questão
O vídeo veio à tona em um momento em que a regulamentação das big techs e sua responsabilidade pelo conteúdo compartilhado pelos usuários têm sido um tema polarizador no Brasil. Essa é uma questão que geralmente divide a esquerda e a direita. Ela está entre as demandas apresentadas pelo presidente dos EUA, Donald Trump , nas guerras tarifárias. Outras demandas são o aumento das tarifas entre os dois países, a anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro (atualmente sob investigação por suposta tentativa de golpe de Estado), e os interesses das grandes empresas de tecnologia.
O vídeo também parece ter gerado um impulso. Em 11 de agosto, menos de uma semana após sua publicação, os deputados federais apresentaram 17 propostas de projetos de lei no Congresso Nacional para tratar das questões levantadas pelo influenciador.
Em 20 de agosto, após a repercussão pública do vídeo, a Câmara dos Deputados votou e aprovou o projeto de lei 2628/2022, que cria regras para proteger crianças e adolescentes em relação a aplicativos, jogos eletrônicos, mídias sociais e programas de computador, segundo o site da Câmara. A proposta, que retornou ao Senado para ser analisada, prevê obrigações para servidores e pais no controle do acesso de menores.
No ano passado, o Instituto Alana, organização focada nos direitos das crianças, publicou uma nota de apoio ao projeto de lei, “considerando a hipervulnerabilidade de crianças e adolescentes diante da exploração comercial praticada por provedores e servidores de informações tecnológicas no ambiente digital”.
Em junho, o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte do país, votou a favor da responsabilização das plataformas de mídia social por publicações ilegais feitas por seus usuários. Os ministros determinaram que o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que faz parte da “Carta de Direitos” da legislação brasileira sobre a internet e trata da responsabilidade das plataformas pelo conteúdo criado por terceiros, é apenas parcialmente constitucional.
Atualmente, o tribunal também é objeto de polarização política, sendo criticado pelo governo de Trump. Um de seus ministros, Alexandre de Moraes, foi considerado violador dos direitos humanos e sancionado pela Lei Magnitsky pelas investigações sobre a tentativa de golpe liderada pelos apoiadores de Bolsonaro. Entre as ordens de Moraes nos últimos anos estavam a suspensão de contas que disseminavam desinformação, discurso de ódio e até mesmo do próprio X por não cumprir as ordens legais no país.
Para algumas pessoas mais alinhadas com a direita do espectro político, regulamentação é sinônimo de censura. Os perfis no X têm questionado o vídeo de Felca, suspeitando que haja uma intenção pró-regulamentação oculta por trás dele.
Em um podcast, o influenciador disse que teve a ideia há um ano e que levou um tempo para preparar o vídeo de 49 minutos. Ele também disse que atualmente utiliza um carro blindado com a equipe de segurança por causa de ameaças, após publicar outro vídeo criticando as empresas de apostas e os influenciadores patrocinados por elas no Brasil. Com esse último vídeo viral, ele disse que já há ameaças de processo contra ele.
Provavelmente existe e a gente conta com isso, que vai existir alguns processos aí. Mas é o lado da verdade. Se ninguém fala, ninguém vai falar.