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Inovação: sucata eletrônica gera soluções de baixo custo para produção de equipamentos médicos sustentáveis

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Inovação: sucata eletrônica gera soluções de baixo custo para produção de equipamentos médicos sustentáveis

Em um mundo onde o avanço da medicina esbarra de forma frequente em barreiras econômicas, uma revolução silenciosa está ocorrendo: a transformação de sucatas eletrônicas em ferramentas biomédicas capazes de salvar vidas. Pesquisadores brasileiros aderem a esse pioneirismo na área da inovação, unindo criatividade, ciência e acessibilidade para enfrentar desafios em terapias celulares e engenharia de tecidos, especialmente para países com recursos limitados.

A terapia celular e a bioengenharia de tecidos têm se mostrado promissoras no tratamento de doenças crônicas como diabetes tipo 1, cardíacas, neurológicas, vários tipos de câncer, insuficiência hepática, Alzheimer, retinite pigmentosa, entre outras. Contudo, o uso dessas tecnologias ainda enfrenta alguns obstáculos consideráveis: a rejeição imunológica das células transplantadas, que exige o uso de imunossupressores, medicamentos que, embora evitem a rejeição, podem provocar efeitos colaterais graves; além do alto custo.

Alternativa terapêutica

Nesse cenário, o microencapsulamento celular desponta como uma alternativa terapêutica inovadora. Desenvolvida inicialmente nos anos 1980, essa técnica consiste em envolver células ou partículas biológicas em uma matriz semipermeável que permite a passagem de nutrientes e oxigênio, mas bloqueia a ação das células do sistema imunológico, que consideram essas células como invasoras estranhas e acabam atacando-as. Assim, cria-se uma “barreira invisível” que protege as células transplantadas, reduzindo o risco de rejeição ou até eliminando a necessidade do uso de imunossupressores sistêmicos os quais podem ficar caso necessário em pequenas quantidades nas cápsulas celulares (microesferas celulares).

Na área clínica, as aplicações são vastas. Células como ilhotas pancreáticas utilizadas no tratamento do diabetes, células do fígado como os hepatócitos, células-tronco e células sanguíneas têm sido estudadas e utilizadas em diversos protocolos experimentais. No entanto, um das principais limitações dessa tecnologia é o seu alto custo: dispositivos comerciais de encapsulamento celular podem ultrapassar U$ 30 mil dólares, tornando-os inacessíveis para muitos centros de pesquisa, especialmente em países de baixa e média renda.

Protótipos construídos com sucata podem ser testados experimentalmente como prova de conceito para o desenvolvimento futuro de equipamentos mais baratos, fabricados com peças novas e em conformidade com as normas de agências reguladoras, como a Food and Drug Adminstration (FDA), nos Estados Unidos, e a Anvisa no Brasil.

15 trilhões de dólares em gastos com saúde até 2050

Desde 2011, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem chamado atenção para a necessidade de promover tecnologias de saúde acessíveis. Em locais com recursos limitados, a falta de equipamentos adequados e o alto custo de importação de tecnologias biomédicas dificultam o avanço científico e o atendimento à população. Estima-se que os gastos globais em saúde possam ultrapassar os 15 trilhões de dólares até 2050, valor que evidencia a urgência de soluções mais econômicas.

Nesse contexto, ganha força o conceito de hardware open-source: dispositivos cuja construção, uso e melhoria são abertos ao público, permitindo que qualquer pessoa ou instituição, mesmo em locais remotos, possa replicá-los, adaptá-los e utilizá-los. Essa filosofia, que já transformou áreas como a robótica e a impressão 3D, agora chega à bioengenharia com excelentes perspectivas. Essa forma de pensar e agir se mostrou viável com os softwares open source, que alavancaram o setor de informática, como por exemplo o kernel Linux, que é usado em vários sistemas operacionais, pagos ou livres.

Experiência brasileira

No Brasil, o nosso Laboratório de Comunicação Celular, do Instituto Oswaldo Cruz/ Fiocruz está liderando uma iniciativa pioneira nesse campo. Nós desenvolvemos um sistema automatizado de microencapsulamento celular a partir de materiais reciclados e eletrônicos descartados. Com base em tecnologia open-source e a um custo incomparavelmente menor que os dispositivos comerciais, o equipamento é capaz de realizar encapsulamento de diferentes tipos de células para transplante terapêutico.

A construção do sistema é baseada em componentes reutilizados e controlada por meio de um microcontrolador Arduino – uma plataforma de prototipagem eletrônica de código aberto responsável por executar instruções -, programado em linguagem C++, conhecida por sua eficiência e desempenho, e amplamente utilizada em desenvolvimento de software, jogos, sistemas embarcados, inteligência artificial, entre outros.

O software utilizado é o Repetier Host, de acesso livre para impressoras 3D, que envia comandos em G-code para movimentar o equipamento, guiando todo o processo de microencapsulamento. Em resumo: um computador comum acoplado ao sistema serve como interface de controle no processo de encapsulamento celular. Além disso, estão desenvolvendo softwares livres baseados em outros open-source.

Esse dispositivo pode ser construído por uma fração ínfima do custo de equipamentos industriais. Sua estrutura reutiliza motores e componentes de impressoras ou scanners antigos, fonte de alimentação de eletrônicos descartados e peças de plástico impressas em 3D. Acreditamos na importância de todo o processo e, por isso, toda a documentação para sua reprodução está disponível gratuitamente online, promovendo a ciência aberta e colaborativa.

Além do impacto direto na pesquisa biomédica, essa iniciativa também representa um exemplo poderoso de como a ciência pode atuar de forma mais sustentável e equitativa.

Investimentos

Enquanto o setor público brasileiro investiu mais de R$ 23 bilhões em tecnologias digitais entre 2014 e 2025 – valor que poderia cobrir a totalidade das bolsas de pós-graduação do país por um ano -, soluções de baixo custo como essa revelam alternativas eficazes e mais alinhadas com as necessidades locais.

A transformação de lixo eletrônico em instrumentos científicos de ponta não apenas reduz o impacto ambiental, como também democratiza o acesso à ciência. Em vez de depender de equipamentos importados e de alto custo, pesquisadores, estudantes e laboratórios ao redor do mundo têm a oportunidade de construir seus próprios dispositivos e avançar no tratamento de doenças graves com recursos mínimos, democratizando o saber e o acesso.

Financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), essa inovação brasileira mostra que, com engenhosidade e compromisso social, é possível mudar o paradigma da pesquisa biomédica global. Sucata eletrônica, ao invés de entulho, pode ser esperança acessível e, sobretudo, transformadora.

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