Na noite de 28 de julho de 2025, Shane Devon Tamura entrou num luxuoso prédio de escritórios em 345 Park Avenue, Manhattan — que abriga sedes da NFL, Blackstone e outras grandes corporações — e atirou à esmo com um rifle M4. Ele matou quatro pessoas, inclusive um policial do NYPD trabalhando como segurança, um executivo da Blackstone e um associado da Rudin Management, antes de se suicidar no 33º andar
O presidente Donald Trump, ao comentar o caso, classificou Tamura como um “lunático enlouquecido” e descreveu o ataque como um ato “sem sentido”, de “pura maldade”. Mas o que Trump tenta colocar à distância funciona como uma metáfora perturbadora da política que ele próprio conduz.
Um tiro pela culatra com efeitos sistêmicos
Desde seu resort de luxo em Mar-a-Lago, Trump dispara tarifas como quem empunha uma metralhadora econômica, espalhando medo e instabilidade pelo mundo afora. Todavia, esses disparos unilaterais podem acabar sendo um tiro pela culatra com efeitos sistêmicos.
As tarifas, impostas à revelia das normas do comércio global, vêm funcionando como instrumentos de coerção e chantagem, buscando subjugar aliados e adversários sob a lógica da intimidação. Esses disparos, ecoando os impulsos nacionalistas da base trumpista — o movimento MAGA (Make America Great Again) —, tendem a ultrapassar o alvo externo: podem desorganizar cadeias produtivas das quais os próprios Estados Unidos dependem, pressionar a inflação e alimentar a instabilidade nos mercados globais.
O aumento nos preços do café anunciado pela Starbucks após a imposição de tarifas sobre produtos brasileiros é apenas um entre muitos sinais de que o custo dessas medidas recairá também sobre o bolso dos consumidores americanos. Como alertou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, em uma guerra comercial “não há vencedores” — um recado claro de que, ao fomentar o confronto, os Estados Unidos também sabotam seus próprios interesses.
A ofensiva tarifária de Trump, longe de restaurar a primazia dos Estados Unidos, pode estar acelerando seu declínio. Ao atacar justamente o sistema multilateral de comércio que ajudaram a construir — e que garantiu vantagens assimétricas por décadas —, os EUA tentam, de forma cada vez mais desesperada, manter os privilégios de uma hegemonia em erosão diante de um mundo em transformação.
Criada em 1994 nos rastros do GATT, a OMC é fruto desse processo: embora inspirada na lógica liberal promovida pelas potências do Norte Global, foi também marcada, desde o início, pela pressão do Sul Global por justiça. A incorporação formal do Tratamento Especial e Diferenciado (TED) em seus acordos constitutivos representou uma vitória política significativa dos países em desenvolvimento, que fizeram da OMC uma arena de disputa por maior equidade nas regras do comércio internacional.
Império em crise tenta reafirmar sua autoridade por meio da força
Ao renegar esse multilateralismo, Washington não apenas sabota um sistema que já não controla plenamente, mas também revela seu incômodo com a emergência de uma ordem mais descentralizada e contestatória. Como escreveu o intelectual italiano Antonio Gramsci, “o velho está morrendo, o novo ainda não pode nascer, e nesse interregno surge uma grande variedade de sintomas mórbidos”. A política tarifária é um desses sintomas: expressão de um império em crise, que, ao tentar reafirmar sua autoridade por meio da força, acaba corroendo as estruturas que vinham sendo lentamente reconfiguradas rumo a uma ordem mais plural.
Diante da escalada tarifária e do colapso das regras multilaterais, muitos Estados, embora pareçam capitular diante do atirador, seguem agindo pelas brechas táticas do terreno. Articulam rotas comerciais alternativas, reforçam parcerias regionais e buscam reduzir sua dependência do dólar por meio de sistemas de pagamento próprios.
A Declaração do Rio de Janeiro, adotada pelos BRICS em julho de 2025, respalda esse movimento ao condenar medidas coercitivas unilaterais, apoiar o uso de moedas locais em transações internacionais e defender uma reforma da OMC que preserve os interesses dos países em desenvolvimento, promova um comércio mais justo e inclusivo e restabeleça um sistema de solução de controvérsias funcional — hoje paralisado pelos sucessivos bloqueios dos Estados Unidos.
A China e a Rússia, por exemplo, já realizam 95% de seu comércio bilateral em moedas locais — um sinal claro de uma ordem paralela está em construção. O Irã, agora membro do bloco, aprofundou suas articulações com a China, sobretudo no campo da infraestrutura estratégica. Em maio de 2025, foi inaugurada uma nova ferrovia comercial direta entre Xi’an e o porto seco de Aprin, no Irã — uma rota terrestre que encurta o trajeto e permite driblar explicitamente as sanções americanas por não depender de rotas marítimas controladas pelo Ocidente. A Rússia, por sua vez, declarou ter desenvolvido “imunidade” aos disparos dos Estados Unidos — não mais baseada no poder militar, como na lógica da dissuasão nuclear da Guerra Fria, mas na criação de institucionalidades capazes de protegê-la dos instrumentos de coerção financeira.
No caso do Brasil, o BRICS tem se consolidado como uma aposta estratégica de diversificação de relações comerciais e abertura de novos mercados. Segundo Celso Amorim, assessor especial da Presidência do Brasil, o tarifaço imposto por Trump só reforça o BRICS como alternativa para o Brasil, como sinalizou para o Financial Times.
A ameaça tarifária ao Brasil, justificada pela acusação de suposta perseguição ao ex-presidente Bolsonaro, cria um precedente perigoso. A Colômbia já reproduz essa lógica: parlamentares norte-americanos e colombianos pedem sanções contra o governo pelas investigações contra Álvaro Uribe, reiterando o uso de pressões externas para blindar figuras alinhadas à direita global. Em ambos os casos, instrumentos econômicos e diplomáticos são mobilizados para interferir em processos internos de responsabilização judicial, revelando uma tentativa de proteger aliados ideológicos com base em fake news, apresentadas como defesa da liberdade e do Estado de direito.
Para países do Sul Global, com histórico de intervenções e humilhações sistemáticas, esse tipo de gesto é lido como uma reatualização de dinâmicas coloniais e imperiais. Longe de isolar seus alvos, a postura norte-americana pode ter o efeito contrário: o de fortalecer os vínculos entre países que reivindicam maior autonomia e voz no sistema internacional — e a consolidar o BRICS como uma plataforma estratégica de cooperação diante das recorrentes práticas de bullying geopolítico.
Desde sua posição de privilégio, Trump tenta redesenhar as cadeias de valor globais por meio de negociações bilaterais assimétricas, nas quais a coerção substitui a cooperação e a desigualdade é travestida de liberdade contratual. Mas o novo mapa comercial que ele traça pode acabar borrado: os países do Sul Global têm respondido com agência e resistência, redirecionando exportações quando são alvo de tarifas, contornando sanções por meio de sistemas alternativos de pagamento e uso de moedas locais, e rejeitando arranjos multilaterais que não reconheçam sua voz.
Ao criar suas próprias institucionalidades — como o Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco do BRICS — e ampliar parcerias entre si, esses países desafiam o centro de gravidade da ordem internacional. Ao contrário do que pretende, o gesto unilateral pode acelerar a transição para um sistema menos hierárquico, mais plural — e menos tolerante à prepotência.
É revelador, portanto, que Trump tenha se referido ao atirador como um “lunático enlouquecido”, como se se tratasse de algo alheio a ele — um gesto extremo, sem qualquer relação com sua própria lógica de ação. Mas a metáfora é mais precisa do que ele gostaria. Seus ataques a esmo refletem uma política externa imprevisível, destrutiva e, no limite, suicida.