Situações médicas envolvendo pessoas conhecidas podem colocar em evidência questões relevantes de saúde. A notícia de que o compositor mineiro Lô Borges (73), autor de clássicos da música popular brasileira, foi hospitalizado em outubro com sintomas de intoxicação medicamentosa, em Belo Horizonte, reacendeu o alerta para um problema crescente que deveria ser alvo de campanhas de prevenção. Semanas depois o artista faleceu.
O uso combinado de vários fármacos e a automedicação representam hoje um dos principais motivos de intoxicação no país e uma das faces mais negligenciadas da crise de saúde pública. Levantamento realizado em 2024 pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF), em parceria com o Instituto Datafolha, revelou que 77% dos brasileiros que utilizaram medicamentos nos seis meses anteriores o fizeram sem prescrição médica. O estudo mostra ainda que 47% se automedicam pelo menos uma vez por mês, e 25% recorrem a medicamentos por conta própria semanalmente ou com ainda mais frequência
A gravidade e a extensão do problema aparecem com clareza nos dados nacionais. Um estudo feito com base nos dados do Sistema Único de Saúde (DATASUS) e do IBGE mostrou que, entre 2009 e 2018, o Brasil registrou 85.811 internações hospitalares por intoxicação medicamentosa, sendo 97% causadas por medicamentos sujeitos à prescrição médica (MRx) e apenas 3% por medicamentos isentos de prescrição (MIP). A mortalidade associada aos medicamentos prescritos foi cerca de 50 vezes maior que a provocada pelos de venda livre, com 2.644 óbitos no período. As regiões Sudeste e Sul concentraram as maiores taxas, afetando, sobretudo, crianças menores de cinco anos e idosos acima de 60 — os grupos mais vulneráveis.“
Quando o uso inadequado pode ser fatal
Compreender os riscos, reconhecer os sinais de alerta e seguir os protocolos de tratamento são passos essenciais para prevenir e conduzir adequadamente os casos de intoxicação medicamentosa. Certos grupos de fármacos estão mais comumente associados a episódios de intoxicação.
Entre os principais figuram os analgésicos, anti-inflamatórios e antitérmicos — como o paracetamol e o ácido acetilsalicílico — amplamente utilizados e de fácil acesso. O risco inerente a essas substâncias está ligado à sua metabolização. Como são processadas pelo fígado e eliminadas pelos rins, doses acima do indicado – e, portanto, excessivas – podem sobrecarregar esses sistemas, impedindo sua absorção adequada e resultando em acúmulo tóxico.
A superdosagem de analgésicos opioides, como o fentanil — que provocou a morte do músico Prince, em 2016 — exemplifica o poder tóxico dessa classe de fármacos quando utilizada à margem do controle médico.
Outro grupo que desperta grande preocupação é o dos depressores do sistema nervoso central, que inclui antidepressivos e ansiolíticos (benzodiazepínicos). Em pessoas com transtornos de humor, como a depressão, o uso indevido ou em doses elevadas pode representar uma ameaça significativa, já que esses medicamentos estão frequentemente associados a tentativas de suicídio e podem provocar intoxicações potencialmente fatais.
A combinação de benzodiazepínicos com anestésicos como o propofol, que levou à morte do cantor Michael Jackson em 2009, mostra como a interação entre depressores pode reduzir drasticamente a atividade respiratória e levar à parada cardiorrespiratória. Essa vulnerabilidade também se estende a anticonvulsivantes, antipsicóticos e antialérgicos de uso comum, que, quando empregados de forma abusiva, também podem desencadear quadros tóxicos graves.
Doses elevadas de informação para proteger
Os acontecimentos ocorridos com celebridades – e por isso mais conhecidos – envolvendo a intoxicação medicamentosa demonstram que o risco associado ao uso de medicamentos é universal e reforçam a necessidade de vigilância e controle rigorosos.
A interação medicamentosa é um capítulo particularmente complexo na farmacologia. O uso concomitante de múltiplos fármacos pode levar uma substância a alterar a ação de outra. Essa competição pode ocorrer em diversas etapas: na absorção pelo sistema digestivo, na distribuição pelo organismo e, de forma crítica, no metabolismo hepático. No fígado, diferentes medicamentos podem competir pelas mesmas enzimas. Se uma substância monopoliza essa via metabólica, a outra pode se acumular no sangue até atingir níveis tóxicos. Fenômeno semelhante ocorre nos rins, onde um anti-inflamatório, por exemplo, pode reduzir a capacidade de eliminação de outro fármaco, potencializando sua toxicidade.
A resposta do organismo a uma intoxicação é classificada em níveis de gravidade:
•Leve: Caracterizada por sintomas como náuseas, tonturas, cefaleia e sonolência.
•Moderado: O quadro evolui com vômitos, taquicardia (aumento dos batimentos cardíacos), confusão mental e as primeiras alterações nas funções renal e hepática.
•Grave: Configura uma emergência médica com risco de convulsões, insuficiência respiratória, arritmias cardíacas e falência de órgãos, podendo evoluir para o óbito.
A rapidez no diagnóstico é decisiva. Os sinais iniciais incluem náuseas, tontura, sonolência e confusão mental; casos moderados evoluem com vômitos e taquicardia; e os graves configuram emergência médica, com risco de convulsões, insuficiência respiratória e falência de órgãos.
A abordagem inicial envolve exames para avaliar as funções dos órgãos vitais (renal e hepática), além da monitorização dos níveis de glicose, gases sanguíneos e da atividade cardíaca por meio de um eletrocardiograma. A dosagem sérica do medicamento suspeito é frequentemente solicitada para confirmar a intoxicação e orientar o tratamento.
O suporte clínico visa à estabilização do paciente. A prioridade é a manutenção das funções vitais, garantindo que as vias aéreas permaneçam livres e a função cardiorrespiratória, estável. Em casos moderados a graves, procedimentos como a administração de carvão ativado ou a lavagem gástrica podem ser empregados para reduzir a absorção do fármaco. Para certas substâncias, existem antídotos específicos.
A internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é indicada para casos graves, permitindo monitorização contínua e intervenções imediatas. Nesses cenários, o auxílio de centros de informação toxicológica é um recurso importante para orientar as equipes de saúde.
A intoxicação medicamentosa é, em grande parte, uma tragédia evitável. O uso abusivo e a automedicação, somados à ausência de orientação profissional, não podem continuar transformando fármacos em agentes de risco. Informação e cuidado são as melhores formas de prevenção: saber identificar sinais de alerta, entender os limites do uso seguro e contar sempre com o acompanhamento médico são atitudes que podem salvar vidas.





