Ad image

Inundações por transbordamento de lagos glaciais e derretimento do “terceiro polo”

74 Min Read
Inundações por transbordamento de lagos glaciais e derretimento do “terceiro polo”

Este artigo foi apresentado como parte da Bolsa de Justiça Climática da Global Voices, que conecta jornalistas de países  sinófonos e da maioria global para investigar os efeitos dos projetos de desenvolvimento chineses no exterior. Encontre mais histórias aqui.

Na imponente região do Himalaia Hindu Kush, também chamada de “Terceiro Polo”, as geleiras estão derretendo a uma velocidade alarmante, o que ameaça a vida e o sustento de milhões de pessoas. Os cientistas estimam que até 75% do volume da  região glacial poderia desaparecer  até o final do século.

O Himalaia Hindu Kush se estende por mais de 3.500 quilômetros ao longo de oito países, incluindo Nepal e China. Imagem de Flickr (licença CC BY-NC-SA 2.0).

À medida que os glaciares recuam, revelam, por vezes, cavidades profundas onde antes havia gelo. Esses sulcos começam a encher-se com a água do degelo, formando novos lagos glaciais. Em outros casos, pequenos lagos surgem nas superfícies dos glaciares cobertos de detritos e, gradualmente, se fundem em lagos mais extensos. Esses corpos d’água não são apenas produtos passivos do degelo; também podem acelerar ativamente a perda de gelo. À medida que os lagos crescem, as bordas das geleiras se rompem e derretem mais rapidamente, provocando uma maior expansão da água. Desde 1990, os lagos glaciais em todo o mundo aumentaram significativamente em número, superfície e volume (cerca de  53%, 51% e 48%, respectivamente) e é provável que essa tendência continue durante o século XXI.

Esses lagos glaciais são uma parte importante da hidrologia regional nas zonas montanhosas e contribuem significativamente para o caudal de rios essenciais, como o Indo e o Brahmaputra, que sustentam a vida, a agricultura, a economia e os serviços ecossistêmicos fundamentais em suas regiões de origem e nas zonas ribeirinhas, mas também podem ser extremamente perigosos.

Se as barragens naturais (frequentemente formadas por rochas soltas ou gelo) que as contêm falharem, podem desencadear repentinas e devastadoras inundações causadas pelo transbordamento dos lagos glaciais, o que causa danos significativos à propriedade, infraestrutura e terras agrícolas e, consequentemente, muitas mortes. Por exemplo, apenas 393 mortes foram atribuídas à inundação causada pelo transbordamento de um lago glacial nos Alpes europeus durante o último milênio, enquanto 5745 ocorreram na América do Sul e 6300 na Ásia Central.

A geleira Thulagi, localizada a sudoeste de Manaslu, na região montanhosa de Manang, no Himalaia, está derretendo lentamente e transformando o gelo em lago. Imagem de Flickr (CC BY-NC-ND 2.0).

Himalaia Hindu Kush: Zona de extrema vulnerabilidade

A região do Himalaia-Hindu Kush constitui o sistema montanhoso mais vulnerável às inundações causadas pelo transbordamento de lagos glaciares. Essa vulnerabilidade decorre da frequência e da magnitude dos lagos glaciais, bem como das grandes populações que vivem rio abaixo, em zonas de alto risco.

Segundo estudos recentes, a Alta Montanha Asiática, que abrange a região do Himalaia-Hindu Kush, concentra a maior explosão de inundações por transbordamento do mundo, com aproximadamente 9,3 milhões de pessoas em risco (cerca de 62% da população global exposta).

Dos quatro países mais populosos, que representam mais da metade dessa população, três estão na região do Himalaia-Hindu Kush: Índia, Paquistão e China. Os dois primeiros são classificados como os países com maior risco de transbordamento de lagos glaciais em nível mundial, devido à quantidade e ao tamanho dos lagos glaciais, e também pelas grandes populações expostas que abrigam.

Ao longo da região do Himalaia-Hindu Kush, os pesquisadores registraram cerca de 500 inundações causadas pelo transbordamento de lagos glaciais nas últimas décadas, e muitas delas foram devastadoras. Em 2020, uma inundação por transbordamento em Jinhua, China, provocou aproximadamente 10 milhões de metros cúbicos de água rio abaixo e destruiu aldeias, infraestruturas e cerca de 382,43 mu (25,5 hectares) de campos. Wang Shijing, pesquisador do Instituto Noroeste de Ecoambiente e Recursos da Academia Chinesa de Ciências explicou ao ScienceNet.com.cn, jornal chinês sobre ciências:

针对目前青藏高原冰湖溃决灾害增加的现象,随着气候变暖加剧、极端事件增加,雪/冰崩、冰川跃动、冰川洪水等冰冻圈失稳事件频发,进而激发了冰湖溃决事件的发生。在一定外因作用下,青藏高原极有可能再次发生溃决洪水灾害。

Em relação ao aumento atual dos desastres causados pelo transbordamento de lagos glaciares no planalto do Tibete-Qinghai, com o aumento do aquecimento global e o aumento de fenômenos extremos, os eventos de instabilidade da criosfera, como avalanches de neve e gelo e o surgimento de glaciares e inundações glaciares, estão se tornando cada vez mais frequentes, causando desastres provocados pelo transbordamento de lagos glaciares.

Outras inundações, como a de 2013 em Chorabari, Índia, e a explosão do South Lhonak em Sikkim,em 2023, causaram grandes danos à infraestrutura e às comunidades.

O que aconteceu em 2023 foi uma cascata de desastres que começou com 14,7 milhões de metros cúbicos de solo congelado que se desprenderam do lago South Lhonak, localizado a 5.200 metros acima do nível do mar em Sikkim, Índia. De acordo com os pesquisadores, o desprendimento provocou uma “onda de impacto semelhante a um tsunami de 20 metros”, que produziu uma fenda na barragem natural e impulsionou a queda em cascata de 50 milhões de metros cúbicos de água rio abaixo. A inundação resultante arrastou aproximadamente 270 milhões de metros cúbicos de sedimentos e detritos, deixando um rastro de destruição de 385 quilômetros ao longo do rio Teesta, que finalmente chegou a Bangladesh. O desastre causou 55 mortes, deslocou milhares de pessoas e destruiu estradas, edifícios e infraestruturas no valor de milhões de dólares, incluindo a barragem hidroelétrica Teesta III e muitas outras ao longo do rio.

Dado o grande uso de barragens e energia hidroelétrica na região, o risco das centrais hidroelétricas é uma ameaça real (e cara). Em 1985, uma inundação do lago glacial destruiu a pequena usina hidrelétrica de Namche, que estava quase concluída. Isso custou ao governo do Nepal cerca de US$ 1,5  milhão e atrasou o acesso dos residentes à produção desse tipo de energia.

Uma bomba-relógio

Os riscos de inundações por transbordamento de lagos glaciais só aumentam à medida que o aquecimento global gera mais instabilidade nas regiões glaciais. Segundo especialistas, os desastres ocorridos em terrenos de alta montanha costumam ser reações em cadeia. Zhang Qianggong, chefe do Departamento de Clima e Riscos Ambientais do Centro Internacional para o Desenvolvimento Integrado das Montanhas, explica em entrevista à Global Voices:

Maybe upstream, because of melting glaciers, a piece of ice fell into the glacial lake, causing waves, which eventually damaged the dam, triggering a GLOF. Then, along the way down, it triggers landslides, so it affects all areas within 10 kilometers. Mountain areas are very sensitive.

Talvez rio acima, devido ao degelo das geleiras, um pedaço de gelo tenha caído no lago glacial e provocado ondas que, finalmente, danificaram a barragem e provocaram uma inundação por transbordamento de um lago glacial. Ao descer, provoca deslizamentos e afeta todas as áreas num raio de 10 quilômetros. As zonas montanhosas são muito sensíveis.

“É muito complicado prever o transbordamento de um lago glacial”, diz Zhang. Os fatores desencadeantes são complexos. Uma inundação pode começar quando desprendimentos ou pedaços de gelo caem no lago e produzem grandes ondas, quando chuvas fortes ou o rápido derretimento da neve e das geleiras transbordam o lago ou quando a barragem natural (formada por gelo ou rochas soltas) começa a enfraquecer. No entanto, como esses fenômenos dependem muito das condições locais, é muito difícil prever exatamente quando e onde uma dessas inundações poderia ocorrer sem uma investigação detalhada no local.

No entanto, as consequências transcendem as fronteiras, não são o resultado de um problema de um único país. Xu Baiqing, renomado especialista do Instituto de Pesquisa do Planalto Tibetano da Academia Chinesa de Ciências, adverte:

Whether in terms of water resource management or scientific and technological efforts, international cooperation is essential. It’s extremely difficult to carry out this kind of work unilaterally.

Tanto em termos de gestão dos recursos hídricos como de trabalhos científicos e tecnológicos, a cooperação internacional é essencial. É extremamente difícil realizar este tipo de trabalho de forma unilateral.

Para enfrentar o risco crescente de inundações decorrentes do transbordamento de lagos glaciares, institutos de pesquisa, como o Instituto de Pesquisa do Planalto Tibetano, adotaram uma perspectiva multifacetada. “O primeiro passo”, diz o Dr. Xu Baiqing, vice-diretor do instituto, “é compilar um inventário exaustivo dos lagos glaciares”.

Isso foi alcançado com o apoio de cientistas europeus, com sistemas integrados de observação espacial-aérea-terrestre que agora cobrem toda a região do Himalaia. Uma vez instalados, a fase seguinte foi identificar o risco. O fato de um lago representar um perigo depende de vários fatores: volume de água, estabilidade estrutural da barragem morena e possíveis danos no rio abaixo em caso de ruptura.

“Isso implica avaliações de risco cuidadosas e multidimensionais”, observa o subdiretor. Para áreas de alto risco, é essencial construir, de forma seletiva, uma cadeia completa de sistemas: observação, alerta precoce e infraestrutura preventiva. Tudo isso requer acesso a uma moeda essencial na era da informação: os dados.

Share This Article
Sair da versão mobile