A cada ano, mais de 2.500 crianças e adolescentes menores de 16 anos viajam a outro país sem o consentimento de um dos pais ou não regressam na data combinada. O nome legal dado a essa condição é subtração internacional. Isso equivale ao “sequestro” de sete crianças e adolescentes, em média, por dia.
Os dados são da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH), gestora das 40 Convenções de Haia e protocolos com regras uniformes para relações privadas e processuais entre países signatários. Entre elas estão as que definiram, em 1980, os “Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças”, em resposta ao “sequestro parental” identificado na época. O tratado instituiu um mecanismo de cooperação jurídica internacional para acelerar o retorno dos filhos ao país onde se encontra o pai, mãe ou responsável que não autorizou a viagem. O instrumento prevê poucos cenários para não ordenar que uma criança embarque de volta à “residência habitual”.
Aos 45 anos de sua assinatura, no entanto, há um descompasso com as transformações sociais ocorridas no mundo e o texto intacto da Convenção da Haia de 1980, ou CH80. Nesse sentido, a divergência sobre o conceito e a regulamentação da violência doméstica entre as nações ainda dificulta as discussões multilaterais necessárias ao contexto das famílias transnacionais.
O debate, que não se iniciou e tampouco termina com o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), posiciona o Brasil na linha de frente da vanguarda. Somente Uruguai, Austrália, México e Colômbia já haviam admitido o problema entre 103 países signatários desse tratado. Na decisão de 27 de agosto, o STF reconheceu, dentre outros pontos, que a violência doméstica é uma das exceções para negar a repatriação de crianças com base no art. 13,(I) “b” da Convenção da Haia, ainda que direcionada exclusivamente contra a mãe.
Sem considerar a violência doméstica, o objetivo original da CH80, de proteger os filhos de rupturas traumáticas em meio a um conflito entre os pais, ficou ameaçado. A própria relatora do tratado, a jurista espanhola Elisa Pérez-Vera, observou a situação em entrevista a la diaria em 2024.
O impacto da violência de gênero
Segundo as estatísticas oficiais mais recentes, de 2021, as mães respondem por 75% das subtrações no plano global. É mais que o triplo dos homens (23%). Além disso, 94% delas são as responsáveis legais pela criação dos filhos e pelo seu desenvolvimento desde que nasceram. Só no século XXI, pelo menos 20.000 mulheres já foram acusadas de sequestrar os próprios filhos em função da Convenção da Haia, considerando os relatórios periódicos da HCCH desde 1999.
Para se instituir mudanças, é necessário romper um padrão de julgamento associado à neutralidade abstrata. As decisões precisam estar alinhadas à uma consciência crítica capaz de incorporar desigualdades culturais e históricas. No caso das mães “subtratoras”, por exemplo, há uma série de contextos sociais, culturais, religiosos e econômicos em jogo. Por isso, a perspectiva de gênero é essencial para proteger também os direitos das crianças.
Nos últimos 50 anos, houve conquistas importantes para os direitos das mulheres. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/ONU, 1979), a lei Maria da Penha, a Convenção Belém do Pará (1994), na América Latina, e outros tratados de direitos humanos. Apesar dos avanços, o Guia de Boas Práticas sobre a Convenção da Haia de 1980 – Parte VI, lançado em 2020 pela HCCH, é polêmico.
O Guia oferece diretrizes aos juízes para avaliar, por exemplo, quão grave “deve ser” uma situação de violência doméstica para evitar o retorno da criança ao país de origem. Trata-se da exceção mais reivindicada pelas mães acusadas de subtração: o Artigo 13,(I) “b” da CH80. Os critérios de interpretação recomendados entram em conflito com outras legislações, como a Lei Maria da Penha no Brasil.
Priorizar o retorno ao país de origem em casos com alegações de violência doméstica pode comprometer a proteção da mulher e o “melhor interesse da criança”. São contradições aos avanços conquistados. As chamadas “mães de Haia”, que sofreram a violência doméstica no exterior e a institucional em seu país, denunciam experiências traumáticas. Reviver momentos difíceis (revitimização) que terminam silenciados faz parte dos procedimentos. Muitas perdem os filhos.
O padrão demonstra uma diferença de tratamento às mulheres na Justiça. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) define “discriminação indireta” como o efeito desproporcional de qualquer norma em determinadas populações historicamente injustiçadas. É indireta porque não é explícita. No caso das “mães de Haia”, elas são duplamente discriminadas, como mulheres e estrangeiras, nos processos por subtração internacional dos filhos. Ocorre “discriminação múltipla” quando mais de uma característica prejudica as mesmas pessoas afetadas pela norma. Gênero e migração somam barreiras no acesso à justiça, um direito fundamental.
O panorama brasileiro
No Brasil, as mães somam 93% em 141 processos julgados pelos Tribunais entre 2007 e 2025, de acordo com dados preliminares divulgados pelo Núcleo de Pesquisa em Subtração Internacional de Crianças (NUPESIC/Universidade Federal Fluminense). Os dados, ainda em construção, pertencem a uma pesquisa jurisprudencial apresentada em audiência da Subcomissão temática do Senado, em julho deste ano.
Respaldando o NUPESIC, não podemos deixar de evidenciar a incompatibilidade da mediação em casos de violência doméstica. A prática de “negociação” gera um espaço propício à perpetuação de assimetrias de poder e revitimização de mulheres. Logo, as discussões apresentadas no Supremo precisam continuar, agora que camadas mais profundas estão expostas em um contexto marcado por desigualdades.
Nesse sentido, as duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), de 2009 (4245 e 2024 (7686, deram o primeiro passo e questionaram as regras para o mal traduzido “sequestro” internacional de crianças à luz da Constituição Federal (CF). O tão esperado julgamento levou 16 anos para reconhecer que a violência doméstica contra mães no exterior configura “situação intolerável” para os filhos. Mas, a violência sempre esteve ali, no centro do artigo 13 (I) “b”, evidenciado pelo Guia de Boas Práticas da HCCH – [Parte VI].
Acompanhando o voto do ainda presidente do STF e relator das ADIs, Luís Roberto Barroso, o plenário reconheceu que a violência doméstica configura um “risco grave de ordem física e psíquica ou uma situação intolerável”, ainda que a criança não seja a vítima direta.
A decisão também tocou problemas como a morosidade judiciária e o devido processo, indicando providências a cargo das instituições da justiça e do Poder Executivo. Entre elas, porém, agilizar demandas de subtração internacional a partir do incentivo à mediação, o que requer muita atenção.
“Novas” perspectivas e a necessidade de vigilância
Prestes a deixar a Presidência do Supremo, no final de setembro, Barroso reforçou a aplicação do Protocolo de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos processos que envolvem a CH80. Publicada em 2021, a ferramenta tornou-se obrigatória para o Judiciário brasileiro em 2023, para desconstruir vieses de gênero e outros marcadores sociais de diferença em processos.
De acordo com o instrumento, “analisar e julgar uma ação com perspectiva de gênero nas relações assimétricas de poder significa aplicar o princípio da igualdade, como resposta à obrigação constitucional e convencional de combater qualquer tipo de discriminação”.
Parece que se inicia um novo ciclo, mas as expectativas podem estar muito elevadas. Como espelhos das sociedades, os tribunais convalidam discriminações. Ninguém notou, por exemplo, que o Protocolo de Gênero instrui a identificar normas discriminatórias que não devem ser aplicadas. As estatísticas globais e os dados do NUPESIC confirmam que é o caso da Convenção da Haia.
Os efeitos da decisão podem ressignificar estigmas da subtração internacional em mães que buscam, com muita dificuldade, um amparo estatal. A pergunta é se isso será suficiente. O papel do Poder Judiciário na transformação social também depende de uma autocorreção de padrões estruturais para romper, definitivamente, a cultura que chancela a desigualdade de gênero.
É preciso alertar que o julgamento não afasta o persistente impacto da relação entre gênero e decisões judiciais em casos de subtração internacional de crianças. A realidade impõe a vigilância sobre condutas que mantém invisível o problema da discriminação por trás das desigualdades.