A filantropia — entendida como a decisão voluntária de indivíduos, famílias ou instituições de direcionar recursos privados para causas de interesse público — tem presença ampla em áreas como educação e ação social. Nos países onde o apoio privado à ciência também se consolidou, como Estados Unidos e Reino Unido, em partes da Europa Ocidental e países asiáticos como Coreia do Sul e Singapura, esse mecanismo integra de forma sólida o financiamento acadêmico por meio de fundações, fundos patrimoniais universitários e programas permanentes de fomento.
O percurso brasileiro é distinto e ainda pouco estruturado, mas há sinais de transformação. O surgimento de fundações e institutos dedicados à produção e ao financiamento do conhecimento, somado ao aumento recente de fundos patrimoniais universitários — tanto em unidades acadêmicas quanto em iniciativas institucionais mais amplas — começa a criar um ambiente institucional mais favorável ao aporte contínuo de recursos privados para pesquisa, à estabilidade orçamentária e à diversificação das fontes de financiamento científico. Esses movimentos combinados delineiam as bases de uma cultura de apoio à ciência em expansão gradual e com maior capacidade de se consolidar no longo prazo.
É nesse contexto que se realiza, no próximo dia 24 de novembro, o II Seminário Internacional “Ciência Encontra Filantropia – Filantropia no Ecossistema Brasileiro da Ciência – Filantropia no Ecossistema Brasileiro da Ciência”. O encontro, promovido pelo Grupo de Estudos em Filantropia em Apoio à Ciência (GEMA/IEA-USP) em parceria com a Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLS), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e instituições convidadas, propõe um diálogo entre pesquisadores, fundações, fundos patrimoniais e organizações que atuam na relação entre ciência e fomento.
A programação reúne experiências nacionais e internacionais e apresenta diferentes modelos de apoio privado, compondo um conjunto de referências para o debate brasileiro. O objetivo do evento é convergir diagnósticos, identificar caminhos de cooperação e estruturar uma agenda para 2026 que amplie a estabilidade do financiamento científico e aprimore práticas de governança.
O lugar da filantropia
A presença de convidados internacionais no encontro permitirá observar como diferentes países estruturaram políticas e instrumentos para estimular a filantropia científica. Entre eles está France A. Córdova, física, ex-diretora da National Science Foundation (NSF), ex-cientista-chefe da NASA e atual presidente da Science Philanthropy Alliance (SPA), nos Estados Unidos. A SPA reúne cerca de 40 entidades voltadas ao apoio à pesquisa básica, e Córdova coordena os esforços de articulação entre grandes fundações que investem em ciência.
Outro convidado confirmado, Manuel Heitor, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal, irá discutir como políticas públicas bem desenhadas podem criar um ambiente mais favorável à filantropia científica. Entre 2015 e 2022, Heitor aproximou governo, universidades e fundações, fortalecendo instrumentos institucionais que ampliaram esse tipo de apoio no país. Também participam Francilene Procópio Garcia (SBPC), José Luiz Egydio Setúbal (Fundação José Luiz Egydio Setúbal/FJLS), Melissa Berman (Rockefeller Philanthropy Advisors), Evan Michelson (Sloan Foundation), Hugo Aguilaniu (Instituto Serrapilheira) e outros especialistas que atuam na interseção entre filantropia, universidades e pesquisa. Os painéis tratarão de modelos internacionais, parcerias institucionais e condições necessárias para fortalecer o ecossistema científico brasileiro — com o propósito de ampliar a colaboração, construir agendas comuns e consolidar o GEMA Filantropia como espaço de articulação e produção de conhecimento no tema.
O apoio filantrópico à ciência pode desempenhar um papel decisivo ao complementar o financiamento público da pesquisa no país, sem que um prescinda do outro. Em um sistema marcado por oscilações orçamentárias e limitações estruturais, esse tipo de fomento pode trazer estabilidade de longo prazo, algo fundamental à ciência. Como a produção científica é cumulativa e depende de ciclos prolongados, a ausência de continuidade pode inviabilizar descobertas promissoras ou interromper linhas de pesquisa estratégicas.
Ao suavizar as flutuações naturais do investimento estatal — fenômeno observado tanto no Brasil quanto em países com tradição científica consolidada — a filantropia ajuda a sustentar a regularidade necessária para que os resultados possam emergir no tempo próprio da ciência.
Outro papel fundamental da filantropia é criar espaço para pesquisas que desafiem as fronteiras da ciência. Os mecanismos públicos de fomento tendem a acolher com mais facilidade propostas que, ao passar pela revisão de pares, se apoiam em referências já consolidadas na comunidade científica. Ao operar com mais flexibilidade, a filantropia pode apostar em ideias disruptivas, de alto risco e alto potencial, que muitas vezes encontram resistência inicial da própria comunidade científica.
Um exemplo marcante é a construção do primeiro laser, em 1960, por Theodore H. Maiman (1927–2007) nos Hughes Research Laboratories (HRL), nos Estados Unidos. Engenheiro e físico, Maiman alcançou resultado porque trabalhava em um ambiente que combinava investimento privado de longo prazo, pesquisa básica ousada e continuidade.
O desafio brasileiro
O país encontra-se em uma fase ainda inicial de sua trajetória de fomento privado à pesquisa. Dispomos, neste momento, de um conjunto de iniciativas muito importantes, mas ainda sem a estrutura que caracteriza sistemas mais maduros. Se há oscilações na política pública, os efeitos são imediatamente sentidos nas instituições de pesquisa.
Quando doações privadas são mobilizadas com grande agilidade, em geral costumam responder a situações emergenciais, como ocorreu na pandemia com o desenvolvimento de aparelhos respiradores. O desafio é transformar respostas pontuais em mecanismos duradouros.
Não se trata, obviamente, de reproduzir modelos externos, mas de entender como foram construídos ao longo de décadas e extrair o que é aplicável às condições brasileiras. A experiência internacional sugere que o fortalecimento da filantropia científica está ligado ao avanço coordenado de três movimentos.
O primeiro diz respeito à criação de plataformas de relacionamento entre cientistas e filantropos. Isso envolve não apenas encontros formais, mas o desenvolvimento de agendas comuns, diálogos regulares e espaços de escuta que permitam construir confiança e orientar investimentos de modo mais alinhado às necessidades da pesquisa.
O segundo movimento seria fortalecer o ambiente institucional. Isso implica ter marcos legais que facilitem doações, regras estáveis para o uso dos rendimentos dos fundos patrimoniais e processos de decisão que funcionem também em momentos de alta demanda. O episódio da doação da Biblioteca Brasiliana Guita e Joseph Mindlin à USP, em 2006, ilustra essa necessidade.
O acervo de 30 mil títulos, destinado ao uso público, quase foi tributado como operação patrimonial comum. Situações como essa mostram que o marco regulatório ainda não está plenamente alinhado ao interesse público das doações para ciência, cultura e educação.
O terceiro movimento sugerido é formar capacidade profissional dentro das universidades e institutos. Captação e gestão de recursos não devem depender de esforços individuais nem de arranjos improvisados. É preciso criar equipes permanentes, com método e formação adequada.
Com esse intuito avançam parcerias com a Associação Brasileira de Captadores de Recursos para cursos destinados a universidades e, em paralelo, a construção de um acordo com a Lilly Family School of Philanthropy, da Universidade de Indiana, para consolidar a filantropia como objeto de estudo acadêmico no Brasil, e não apenas como prática dispersa.
A comunicação pública da ciência é outro componente que precisa ser incorporado de modo mais sistemático. As universidades brasileiras mantêm um diálogo consistente com seus pares, mas precisam investir consistentemente o diálogo com os ímpares – estudantes, famílias, comunidades locais e formuladores de políticas públicas. Enquanto alguns centros criaram áreas de comunicação e investem em divulgação científica, muitos permanecem encerrados em si mesmos.
Uma filantropia estruturada pode contribuir para esse esforço apoiando iniciativas que aproximem o conhecimento científico de diferentes segmentos sociais e reforcem a compreensão pública do papel da ciência.
O seminário será realizado presencialmente na sala do Conselho Universitário da USP (Rua da Reitoria 374, na Cidade Universitária), com transmição pelo YouTube do IEA-USP. Mais informações (clique aqui).
