Durante a ditadura militar brasileira, algumas vozes insistiram em não se calar. Uma delas foi a da jornalista e cineasta Lucia Murat, que fez do cinema uma forma de lembrar, denunciar e resistir. Aos 76 anos, é considerada a diretora com mais longas-metragens feitos para o circuito comercial na América Latina. Em quase todos seus 14 longas, assinou direção, roteiro e produção. Também realizou médias-metragens, documentários, séries e trabalhos para TV e streaming, totalizando 65 obras.
A mostra “Cinema de Resistência: um olhar sobre o Brasil invisível”, que começa neste dia 28 de maio e vai até 23 de junho no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, antes de seguir para o CCBB de São Paulo em julho, apresenta 34 filmes de sua carreira, organizados em quatro eixos temáticos: Ditadura & Memória, Povos Originários, Questões Femininas e Desigualdades, que evidenciam o compromisso social e estético da cineasta. Mas sua obra ultrapassa o escopo da mostra: é cinema para ser debatido e sentido.
Ao longo de mais de 40 anos de carreira, Lucia construiu um inventário de vidas subjugadas a existências mínimas. Tornou visíveis os invisibilizados: corpos torturados pela ditadura, pela polícia, pela usurpação de terras, pelo tráfico, pela opressão de classe, idade, gênero e raça.
Uma história marcada por repressão e arte
Nascida em família de classe média no Rio de Janeiro, Lucia estudava balé e Economia quando ingressou no movimento estudantil nos anos 1960. Participou da Dissidência Estudantil da Guanabara, ligada ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
Foi presa pela primeira vez aos 18 anos, na queda do Congresso da União dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, São Paulo, em 1968. Depois, passou dois anos e meio na clandestinidade, até que em 1971 foi novamente detida e passou três anos e meio sob custódia do regime militar, quando foi brutalmente torturada pelo DOI-Codi.
Esse passado ressurge com força e linguagem ousada em seu primeiro longa-metragem, “Que bom te ver viva” (1989). Quando estreou, ainda eram poucas as cineastas de expressão no Brasil. A mistura de ficção com relatos reais de ex-militantes, narrados por Irene Ravache, causou forte impacto à cinematografia brasileira.
Sua própria produtora, Taiga, Filmes e Vídeo, foi criada logo após Lúcia sair da prisão. O seu primeiro trabalho audiovisual, O Pequeno Exército Louco (1984), é um média-metragem sobre a Revolução Sandinista, filmado na Nicarágua. O interesse por temas políticos e por coproduções internacionais permanece até hoje, sendo reconhecida com a medalha Chevalier des Arts et Lettres da França, em 2013.
Um dos filmes mais provocadores de sua carreira é “Olhar Estrangeiro” (2005), baseado na pesquisa do livro “O Brasil dos gringos: imagens no cinema”, de Tunico Amâncio. Nele, Lucia investiga os clichês sobre o Brasil disseminados por produções estrangeiras. Entrevistando diretores, roteiristas e atores de diversos países, ela questiona como o cinema internacional construiu uma imagem exótica, sexualizada e distorcida do país e, em especial, da mulher brasileira.
O olhar para os povos originários
Outro tema recorrente na filmografia de Murat é a luta dos povos indígenas. Em “Brava Gente Brasileira” (2000), ela construiu uma ficção baseada na história verídica de resistência dos indígenas Guaicurus, que, em 1778, enfrentaram os colonizadores portugueses no Forte Coimbra no Pantanal do Mato Grosso do Sul. E no documentário “A Nação que não esperou por Deus” (2015), mostrou a forma de vida e a luta pela demarcação das terras dos Kadwéus, descendentes dos Guaicurus, que atuaram na ficção histórica.
Já na série documental “Vestígios do Brasil” (2019), Lucia percorre o país em busca de histórias ligadas aos relatos do promotor público Jader Figueiredo Correia, entre 1967 e 1968, no que ficou conhecido como relatório Figueiredo. Com mais de sete mil páginas, o documento foi ocultado durante a ditadura e recuperado, em 2012, pela Comissão Nacional da Verdade. Ele revela inúmeros crimes cometidos contra populações indígenas durante a ditadura militar, envolvendo roubo de terras, torturas e escravização e até dizimação de povos inteiros com a introdução deliberada do vírus da varíola.
Seus filmes também revelam a força e a resistência das novas gerações indígenas, que conseguiram retomar em alguma medida as tradições e os modos de vida das gerações passadas, refazendo seus elos e algumas vezes recuperando terras perdidas.
Balé, juventude e resistências femininas
Do seu amor ao balé, interrompido na juventude, nasceram pelo menos dois filmes. No musical “Maré, Nossa história de amor” (2007), ela discute as desigualdades sociais, a falta de oportunidade para os jovens da periferia e o importante papel da arte em comunidades carentes do Rio.
Já “Em três atos” (2015), um dos mais poéticos trabalhos de Lucia, ela celebra o envelhecimento feminino na dança, com participação da bailarina Angel Vianna e textos de Simone de Beauvoir.
Outros filmes exploram a atuação feminina em espaços de poder e vulnerabilidade. Em “Doces Poderes” (1997), inspirada em sua experiência como jornalista logo após sair da prisão, Murat discute temas atualíssimos sobre o papel da mídia na democracia. Sua importância à época foi mostrar como, num país de democracia recente, jornalistas rasgavam a ética durante campanhas eleitorais em troca de dinheiro.
E numa situação quase de thriller, “Praça Paris” (2017) aborda a relação entre uma psicanalista portuguesa e sua paciente moradora de uma comunidade carente. O filme rendeu prêmios de direção e para a atriz Grace Passô.
Memória como eixo central
A reflexão sobre os erros e acertos da sua geração atravessa filmes como “Quase dois irmãos” (2004), que propõe uma releitura ficcional do convívio entre presos políticos e presos comuns no Presídio da Ilha Grande. Corajoso e ousado na sua abordagem, também ganhou diversas premiações em festivais no Brasil e no exterior.
Inspirado na vida de uma grande amiga de Lucia, “A memória que me contam” (2012) recria a história da militante, economista e socióloga Vera Sílvia Magalhães. O filme expõe conflitos com filhos, utopias derrotadas, terrorismo, comportamentos sexuais transgressores, e lança mão de boa dose de metalinguagem para construir um filme dentro de um filme de forma poética e misteriosa.
Mas talvez o filme mais potente nesse sentido seja “Uma longa viagem” (2011), um retrato íntimo, e ao mesmo tempo ficcional, da relação entre a cineasta e seus irmãos durante os anos 1970. Um dos mais ousados em termos plásticos, a obra combina materiais diversos, como cartas; vídeos atuais e antigos em formatos de super-8, 35mm e digitais; além de performances e encenações. Caio Blat, o ator que refaz em monólogos as memórias de seu irmão mais novo Heitor, transmuta seu próprio corpo em tela, em suporte para a imagem em movimento.
Em “Ana. Sem título” (2020), o tema da arte aflora mais uma vez e a mistura entre realidade e ficção se intensifica. As trocas entre artistas plásticas latino-americanas, que de fato existiram, entre os anos de 1970 e 1980, serviram de guia para falar da realidade política do continente nessa época, marcada por golpes militares. O filme se apresenta como uma espécie de documentário de invenção e mostra que a ficção pode conter mais verdades do que os próprios fatos reais narrados.
Já em “O Mensageiro” (2023), Lucia conta sua própria história, quando presa e brutalmente torturada recebe ajuda de um soldado que a vigia. A personagem que a representa em cena agora se chama, não por acaso: Vera. O soldado que avisa a família de Lucia/Vera sobre seu paradeiro acaba estabelecendo uma relação de afeto com a mãe desta. O fato que aconteceu na vida real com Lucia e que lembra outros episódios também verídicos ocorridos com outros presos e torturados que tiveram pequenos gestos de solidariedade e coragem de quem estava do outro lado da cela, é tratado a partir da perspectiva do trabalho de Hannah Arendt, em “A Condição Humana”, sobre a irreversibilidade e o poder de perdoar.
A teoria da filósofa alemã de origem judia, que ficou muito conhecida por sua reflexão acerca da gênese do mal na época dos julgamentos de ex-oficiais nazistas, vira literalmente tema da aula da personagem quando já adulta, interpretada pela própria Lucia em cena, no fim do filme. Para Arendt, o perdão “serve para desfazer os atos do passado, cujos ‘pecados’ pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração”. Arendt se referia assim ao povo alemão e a muitos outros que mesmo cúmplices do que foi feito ao povo judeu deveriam ter a possibilidade de um futuro. Perdoar não seria esquecer, nem deixar de punir os verdadeiros praticantes e engenheiros do mal, mas sem um perdão aos cúmplices, que não praticaram nenhum ato de mal, simplesmente se omitiram, “nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos”.
Uma voz necessária
Seu filme mais recente, “Hora do Recreio” (2025), segue inovando. Laureado recentemente na Berlinale de 2025, o documentário, ainda inédito em circuito comercial, mostra alunos de escolas em áreas de conflito falando sobre violência, racismo e feminicídio e criando performances sobre suas realidades locais. Aos 76 anos, Lucia continua filmando os excluídos invisíveis como forma de resistir às aberrações que se perpetuam, algumas vezes, por séculos de injustiças no país.
Esse olhar, que mescla autobiografia, documentário e ficção, faz de Lucia Murat uma cineasta imprescindível. Como curadora, revisitar sua obra foi também revisitar as dores e forças do Brasil. Mas sua obra, acima de tudo, nos convida a resistir.
Mostra Cinema de Resistência: um Olhar sobre o Brasil Invisível Data: 28 de maio a 23 de junho (RJ) e 4 a 29 de julho (SP) Entrada: gratuita, com retirada de ingressos a partir das 9h do dia de cada sessão/atividade, pelo site bb.com.br/cultura ou na bilheteria do CCBB.