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Lula na ONU: crime organizado não é terrorismo

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Lula na ONU: crime organizado não é terrorismo

O discurso do presidente Lula na abertura da 80ª sessão da Assembleia Geral da ONU era muito esperado. Aguardavam-se suas manifestações sobre o intervencionismo dos Estados Unidos contra o Brasil, sobre a condenação de Jair Bolsonaro e seus cúmplices, sobre o posicionamento na luta contra a fome e a miséria, contra o genocídio em Gaza e a favor das iniciativas globais pelo meio ambiente.

As declarações vieram e foram contundentes. Em meio aos grandes temas, o discurso de Lula incluiu importantes linhas sobre a questão do crime organizado e do terrorismo. O mandatário começou afirmando que “é preocupante a equiparação entre a criminalidade e o terrorismo”, em direta referência às decisões de Donald Trump de equivaler grupos do crime organizado latino-americano a organizações terroristas.

Essa relação foi traçada por Trump logo no primeiro dia de mandato, em janeiro de 2025. Na ocasião, assinou uma ordem executiva que determinou a inclusão de grupos da criminalidade organizada da América Latina na lista de organizações terroristas. Assim, entidades como o Tren de Aragua da Venezuela, Los Choneros do Equador, Cartel de Sinaloa do México e Mara Salvatrucha de El Salvador passaram a dividir espaço com Boko Haram e ISIS na relação de “Foreign Terrorist Organizations” do Departamento de Estado.

Apenas retórica?

A associação entre narcotráfico e terrorismo não é uma novidade no discurso securitário dos EUA. Nos anos 1980, grupos como Sendero Luminoso no Peru e o Cartel de Medellín na Colômbia já foram classificados como ‘narco-terroristas’ por enfrentarem os seus respectivos Estados com recursos provenientes do tráfico de cocaína.

O governo do então presidente Ronald Reagan apresentou o ‘narco-terrorismo’ como uma grave ameaça à segurança das Américas, justificando a mobilização das forças armadas dos EUA para combater o tráfico internacional e pressionando para que os países andinos transformassem os seus militares em tropas antinarcóticos. A pressão funcionou e deixou um forte legado em países como Colômbia, Peru e México, onde os militares converteram-se definitivamente em ‘super-polícias militares’, perdendo a capacidade de atuar como efetivas forças de defesa nacional.

Após os atentados de 11 de setembro de 2001 a relação entre narcotráfico e terrorismo foi atualizada para acusar grupos fundamentalistas islâmicos como a Al Qaeda de financiar-se com tráfico de heroína e outras drogas. O simbolismo desta acusação é enorme. A figura do ‘terrorista’ passou a ser identificada como a do maior inimigo à segurança mundial, uma ameaça existencial à “civilização”, sinônimo de radicalização e de fanatismo.

Mas não é só retórica. Com o apoio de uma sociedade amedrontada, o governo de George W. Bush construiu um arcabouço jurídico e institucional antiterrorista que conferiu poderes excepcionais ao Estado para reprimir ‘terroristas’. Diferentemente de um criminoso, o ‘terrorista’ é uma pessoa sem direitos. Ela pode ser presa sem acusação formal, torturada, retida em locais desconhecidos e por tempo indeterminado sem que essas ações sejam consideradas ‘terrorismo de Estado’. Seus bens e propriedades podem ser confiscados, suas contas bancárias interditadas e seus recursos absorvidos pelo Estado sem prestação de contas.

Hoje, quando Trump estende a classificação de ‘terrorista’ para grupos do crime organizado transnacional, permite-se que determinadas pessoas ‘fora-da-lei’ sejam tratadas efetivamente fora da lei de um Estado Democrático de Direito. Na prática, uma pessoa latino-americana acusada pelo governo dos EUA de ser pertencente a um dos grupos listados como terroristas, poderá ser capturada fora dos EUA, com ou sem o auxílio do seu governo, podendo parar em Guantánamo ou simplesmente desaparecer.

Pressão geopolítica

A chamada ‘guerra às drogas’ é, desde os anos 1980, um instrumento de pressão diplomática e geopolítica dos EUA, usada para chantagear governos na América Latina, alinhar políticas repressivas às diretrizes estadunidenses, justificar a presença de pessoal militar, de inteligência e de bases militares na região, entre outras formas de intervenção.

A ‘guerra contra o terror’, desde 2001, serve a propósitos parecidos para o mundo todo, mas com pouca repercussão na América Latina. Agora, a nova classificação para as organizações criminosas latino-americanas sincroniza a ‘guerra às drogas’ com a ‘guerra contra o terror’. Sendo mais do que retórica, a lista atualizada pelo Departamento de Estado permite que os EUA renovem os mecanismos para atuar na América Latina num momento particularmente sensível para o país.

Os EUA enfrentam uma crise política interna grave e um desafio global sem precedentes colocado pela ascensão consistente e vertiginosa da China como potência econômica e militar mundial. A presença econômico-comercial dos chineses na América Latina ameaça concretamente a hegemonia que os EUA estabeleceram no continente há mais de cem anos e a postura altiva dos governos das maiores economias da região — Brasil e México — torna os instrumentos de pressão comercial, como o tarifaço, muito menos efetivos do que o pretendido por Washington.

Nesse contexto, Trump deslocou uma força naval militar para as proximidades da costa venezuelana, reativando as acusações de que o regime liderado por Nicolás Maduro seria um ‘narco-Estado’ interessado supostamente em enviar cocaína para debilitar a saúde dos estadunidenses. Trump acusa Maduro de ser o cabeça de um grupo chamado Cartel de los Soles formado, supostamente, por militares de alta patente. As únicas fontes que afirmam existir tal ‘cartel’ são os próprios EUA e vozes ligadas à oposição venezuelana de ultradireita no exílio. No entanto, a acusação é grave e tem ressonância na opinião pública estadunidense.

No mesmo diapasão, o governo dos EUA acaba ‘descertificar a Colômbia de Gustavo Petro por não ter cumprido compromissos de combate ao narcotráfico. A ‘certificação’ é um ‘selo’ atribuído todos os anos pelos EUA que, unilateralmente, indicam se um país foi ou não alinhado à política antidrogas de Washington. Quando o país é reprovado, pode sofrer sanções econômicas, corte de linhas de crédito, empréstimos e ajuda militar.

É importante destacar que os grupos incluídos na lista de Trump têm origem em países-chave para os interesses geopolíticos e geoeconômicos na América Latina. Assim, a instrumentalização política e econômica da atual fase da ‘guerra às drogas’ pelos EUA não é mera pirotecnia, mas parte de uma disputa pela hegemonia no continente.

Lula lá em NY

Contra a lógica da repressão unilateral, Lula defendeu na ONU a cooperação, afinado à tradicional ênfase que sua política externa confere ao multilateralismo. O presidente brasileiro afirmou que “a forma mais eficaz de combater o tráfico de drogas é a cooperação para reprimir a lavagem de dinheiro e limitar o comércio de armas”, destacando que o foco deveria ser a força econômica do crime organizado e o tráfico de armas.

A menção à lavagem de dinheiro remete às recentes operações da Polícia Federal (Quasar e Tank) e do Ministério Público de São Paulo (Carbono Oculto) que desbarataram esquemas de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) realizados por meio de instituições financeiras, postos de gasolina e outros negócios. As iniciativas foram consideradas bem-sucedidas porque levaram à prisão e indiciamento de operadores financeiros do crime organizado e não dos ‘peixes-pequenos’ de sempre, invariavelmente pobres, negros e periféricos.

A referência à cooperação internacional remeteu, ainda, à inauguração do Centro de Cooperação Policial Internacional em Manaus/AM realizado no dia 09 de setembro passado com a presença de Lula e, não coincidentemente, de Petro. O centro é uma iniciativa do Brasil para coordenar esforços de inteligência no combate ao crime organizado e aos crimes ambientais na Amazônia, reunindo representantes dos nove estados brasileiros que contam com bioma amazônico, além de membros de forças de segurança dos oito países da Pan-Amazônia, incluindo a França por conta da Guiana Francesa.

Por fim, Lula indicou que o Brasil é contrário a intervenções unilaterais de caráter militar, comparando o uso de força desproporcional — ou seja, o emprego de forças armadas para combater grupos criminosos — à “execução de pessoas sem julgamento”. Concluiu esse trecho do discurso sustentando que intervenções desse tipo “em outras partes do planeta (…) causaram danos maiores do que se pretendia evitar”.

Apesar de breve, a inclusão do tema do crime organizado no discurso de Lula na ONU pode ser entendido como um argumento adicional às várias frentes de oposição entre o seu governo e o de Donald Trump. Assim como os temas ambientais, a questão da criminalidade organizada é, ao mesmo tempo, um problema interno e internacional para o Brasil.

Escolhendo posicionar o país contra a super-securitização do crime organizado promovida pelo governo Trump, o pronunciamento de Lula enviou recados claros para a comunidade internacional, mas também para o panorama político interno no Brasil, onde a ultra-direita segue empenhada em considerar o crime organizado como força terrorista a ser combatida com a repetição da velha fórmula repressiva composta por aumento do número de presídios, incremento na compra de armas para as polícias militares, pressão pelo engajamento das forças armadas em operações de garantia da lei e da ordem (GLO) e da militarização das polícias civis estaduais e, agora também, das guardas municipais.

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