A Reunião de Cúpula do G20 na África do Sul, realizada em Joanesburgo nos últimos dias 22 e 23 de novembro, simbolizou o esforço de reorientar a agenda global em direção às prioridades do Sul Global.
Esse movimento foi tecido ao longo de quatro presidências consecutivas do G20 exercidas por países do Sul Global — Indonésia (2022), Índia (2023), Brasil (2024) e, agora, África do Sul (2025). Com a entrada da Indonésia no BRICS+ neste ano, todos esses países passaram a integrar simultaneamente os dois arranjos, favorecendo uma circulação inédita de agendas e uma convergência progressiva em torno da defesa de um multilateralismo mais inclusivo, da reforma da governança internacional e do reconhecimento das prioridades estruturais do Sul Global.
Esta foi a primeira Cúpula do G20 realizada no continente africano — sob o tema “Solidariedade, Igualdade, Sustentabilidade” — e a segunda a contar com a União Africana como membro pleno, após sua incorporação no encontro do Rio de Janeiro, no ano passado.
Apesar — e, em certa medida, graças — à ausência dos Estados Unidos, cujo presidente Donald Trump anunciou um boicote sob o argumento de que a África do Sul promovia discriminação sistemática contra fazendeiros brancos afrikaners, a Cúpula assumiu um caráter inédito: a declaração final foi aprovada já no primeiro dia, rompendo com a tradição de conclusão do documento apenas ao final do encontro e evidenciando o consenso possível entre os membros.
O que foi a Declaração de Joanesburgo
A declaração adotada em Joanesburgo representou uma inflexão afrocentrada que, de forma inédita, posiciona a África como lugar de enunciação global no âmbito do G20. A inovação não está em tratar de problemas africanos, mas em evidenciar que os principais desafios contemporâneos — desigualdade, mudança climática, dívida, insegurança alimentar, conflitos, fluxos ilícitos e disputa por minerais críticos — não apenas atravessam a África, mas ali se condensam e se tornam mais nítidos.
O continente deixa de ser retratado como espaço de carência e passa a ser reconhecido como espaço de centralidade: as situações observadas na África — instabilidade climática, desigualdades multidimensionais, insegurança alimentar, tensões geoeconômicas e disputas tecnológicas — revelam não vulnerabilidades endógenas africanas, mas falhas estruturais do sistema internacional. Assim, a África deixa de ocupar simbolicamente a periferia do mundo e passa a ser compreendida como o lugar onde as contradições globais se intensificam, se entrelaçam e se tornam visíveis.
A declaração final traz uma dimensão que rompe com o silêncio histórico sobre os saberes africanos e questiona as lógicas individualistas que marcaram a construção de muitas instituições globais. Logo no início, o documento afirma que, à luz do Ubuntu, nenhuma nação pode prosperar sozinha e que o destino de cada país está ligado ao dos demais. O Ubuntu, expresso na ideia “eu sou porque nós somos”, é apresentado como base ética e política para lembrar que a prosperidade não nasce apenas de esforços individuais, mas das relações — humanas, sociais, ambientais e econômicas — que sustentam a vida em comum.
Inspiração na filosofia Ubuntu
Essa perspectiva também funciona como uma resposta às práticas unilaterais que vêm marcando a política externa de Trump sob a lógica do America First, expressa na imposição de tarifas unilaterais, no enfraquecimento deliberado de instituições como a OMC e na recusa de compromissos coletivos em áreas como o clima, a saúde global e a proteção social.
Inspirada na filosofia do Ubuntu, a declaração condena medidas unilaterais que contrariam as regras multilaterais e convoca os Estados a assumirem corresponsabilidade diante dos desafios sociais, climáticos e geopolíticos do mundo contemporâneo. Ao reafirmar que nenhuma nação pode prosperar isoladamente, o documento sustenta que respostas eficazes às crises de dívida, à emergência climática, à fragmentação produtiva e às rupturas tecnológicas dependem de arranjos multilaterais baseados no diálogo, na reciprocidade e na construção de bens públicos globais.
A declaração eleva a desigualdade a eixo transversal, consolidando uma inflexão promovida pelas presidências do G20 conduzidas por países do Sul Global — em especial a brasileira, que a colocou como fio condutor da agenda. Em Joanesburgo, ela deixa de ser tratada como tema setorial e passa a ser entendida como fundamento para qualquer discussão — econômica, climática, tecnológica ou social — reafirmando que não há cooperação efetiva nem provisão de bens públicos globais em um mundo marcado por assimetrias persistentes.
O documento reconhece que altos níveis de endividamento comprometem o espaço fiscal de países de baixa e média renda, especialmente os africanos, bloqueando trajetórias de desenvolvimento e penalizando justamente aqueles que mais precisam investir em transformação produtiva, proteção social e adaptação climática.
Trocas de dívida por ação climática
Nesse contexto, abre-se espaço para mecanismos inovadores, como as trocas de dívida por desenvolvimento ou por ação climática, capazes de oferecer fôlego financeiro e maior sustentabilidade da dívida. Cinco anos após sua criação, o Common Framework — mecanismo coordenado pelo G20 e pelo Clube de Paris — foi acionado formalmente apenas por quatro países, todos africanos (Gana, Etiópia, Zâmbia e Chade), evidenciando tanto o epicentro geográfico das vulnerabilidades quanto os limites de um sistema ainda inadequado frente às urgências do continente
No eixo climático, a declaração enfatiza que as mudanças climáticas afetam de forma desproporcional os mais vulneráveis — justamente aqueles que historicamente contribuíram menos para o problema — e reafirma a centralidade da adaptação. Ao articular clima, pobreza e desigualdade, o documento mostra que não se trata apenas de enfrentar fenômenos ambientais, mas de lidar com formas persistentes de injustiça e assimetria que determinam quem pode se proteger, quem tem acesso a recursos e quem arca com os maiores custos.
A mesma interdependência entre clima, pobreza e desigualdade reaparece no campo energético. O documento apresenta dados alarmantes: mais de 600 milhões de africanos vivem sem acesso à eletricidade e 1 bilhão não tem acesso a cozinhar com combustíveis limpos, o que resulta em 2 milhões de mortes anuais por poluição doméstica — expressão extrema de uma desigualdade silenciosa.
No que diz respeito à segurança alimentar, o G20 reconhece que mais de 720 milhões de pessoas ainda enfrentam fome, segundo dados de 2024. A referência à “Aliança Global contra a Fome e a Pobreza”, lançada sob a presidência brasileira e agora reiterada pela presidência sul-africana como plataforma estruturante para enfrentar, de forma integrada e sustentável, a pobreza, a fome e a desigualdade, evidencia a continuidade entre as duas presidências e reforça a centralidade desses temas na agenda do G20.
Minerais críticos como vetor de industrialização, em vez de commodities
Talvez a seção mais inovadora do documento seja a dedicada aos minerais críticos. Pela primeira vez, o G20 afirma que esses minerais, essenciais para a transição energética, não devem ser apenas exportados como matéria-prima, mas também utilizados como vetor de industrialização e de beneficiamento locais, reconhecendo a soberania dos países produtores para capturar valor por meio de tecnologia e inovação.
A declaração lança o Critical Minerals Framework que recentra os países ricos em recursos naturais — muitos deles africanos e latino-americanos — como protagonistas nas cadeias globais, e não meros fornecedores periféricos. Esse ponto ecoa diretamente a afirmação do presidente Lula no G20: “Os países com grande concentração de reservas de minerais não podem ser vistos como meros fornecedores, enquanto seguem à margem da inovação tecnológica”.
A Declaração final, em linha com a agenda histórica do G20, estende o combate às desigualdades ao âmbito da governança global, defendendo a reforma das instituições de Bretton Woods e a ampliação da participação de países pobres. Reafirma, ainda, o apoio ao aumento da representação africana, latino-americana e asiática no Conselho de Segurança da ONU.
Nesse contexto, ganha força a percepção do paradoxo segundo o qual mais de 60% dos conflitos armados ocorrem na África e, ainda assim, o continente tem presença mínima nos mecanismos globais de paz e segurança. Assim, a África permanece predominantemente o lugar sobre o qual se fala — tema do Conselho, objeto de atenção e de intervenção — e não o lugar a partir do qual se fala. A menção simultânea aos conflitos no Sudão, na República Democrática do Congo, nos Territórios Palestinos Ocupados e na Ucrânia rompe com a hierarquização seletiva dos conflitos e confere novo status à agenda africana.
Embora mencione a importância da taxação progressiva e das políticas de redistribuição de forma genérica, a declaração não retoma a proposta de imposto sobre indivíduos super-ricos que foi incorporada na Declaração de Líderes no Brasil, que defendia o engajamento cooperativo entre países para garantir que indivíduos de patrimônio ultra-elevado fossem efetivamente tributados, com base no compartilhamento de boas práticas, mecanismos antievasão e princípios fiscais comuns.
A declaração coloca a desigualdade como eixo transversal, reconhecendo seu impacto no desenvolvimento, no clima, no financiamento, na economia digital e no cuidado. No entanto, as propostas mais ambiciosas, como as apresentadas pelo W20 (grupo de engajamento das mulheres), são diluídas: embora haja menções à economia do cuidado, às desigualdades salariais e à participação feminina, essas questões aparecem isoladas, em setores, e não como dimensões estruturantes das políticas macroeconômicas, fiscais e comerciais.
Esse limite torna-se ainda mais evidente quando observamos que, embora a desigualdade seja nomeada de forma reiterada, o racismo — que historicamente estrutura o acesso à terra, à propriedade, ao trabalho e à proteção — permanece não dito. Essa ausência é particularmente significativa no contexto do boicote dos Estados Unidos, marcado pela alegação falsa do genocídio de fazendeiros brancos na África do Sul, o que revela como disputas raciais e econômicas moldam a própria ordem internacional.
O boicote norte-americano foi motivado pela aprovação, em janeiro de 2025, de uma nova Lei de Desapropriação, que permite ao Estado sul-africano reivindicar terras improdutivas ou abandonadas sem indenização prévia. A medida, voltada à reparação histórica e à correção de desigualdades estruturais na distribuição fundiária, foi apresentada pelo governo como forma de enfrentar a herança do apartheid, que deixou entre 70% e 80% das terras agrícolas comerciais sob controle de uma minoria branca que representa menos de 8% da população.
Ainda assim, Trump classificou a lei como um instrumento de “genocídio branco”, invertendo o eixo da violência histórica e transformando mecanismos legais de redistribuição em perseguição racial. Mais do que uma reação isolada, trata-se da expressão de uma ordem internacional estruturada pela branquitude, que frequentemente reinterpreta políticas redistributivas como violações à propriedade, à segurança ou à estabilidade institucional. Sem nomear o racismo, torna-se impossível compreender plenamente as desigualdades persistentes da política global, como o racismo ambiental, a distribuição desigual dos impactos climáticos e a sobrecarga do cuidado sobre mulheres racializadas.
Fim de ciclo inédito e risco de retrocesso
A Cúpula de Joanesburgo encerra um ciclo político singular na história do G20: pela primeira vez, quatro presidências consecutivas foram exercidas por países do Sul Global, permitindo que temas historicamente periféricos — desigualdade, justiça fiscal, transição energética justa e soberania sobre recursos naturais — fossem alçados ao centro da agenda.
Com a presidência passando agora aos Estados Unidos (2026) e ao Reino Unido (2027), abre-se a possibilidade do G20 se reaproximar de sua lógica original de G7 ampliado. Por isso, torna-se ainda mais estratégico que os países do Sul Global — articulados por meio do BRICS e de outras instâncias — cheguem com agendas convergentes, densidade normativa e coesão política, à altura de negociar com um G7 que já se apresenta institucionalizado e articulado, com posições previamente alinhadas.
Foi nesse espírito que o anfitrião do G20 na África do Sul, o presidente Cyril Ramaphosa, afirmou, na Cúpula do G20 Social, que o lugar de um país no sistema internacional não pode depender de sua localização geográfica, de sua renda ou de seu poder militar, e que nenhuma nação deve ser tratada como voz secundária nas decisões globais.
Ao recusar o pedido informal dos Estados Unidos para transferir a presidência sul-africana a um representante norte-americano de menor hierarquia, insistindo que a transferência ocorresse entre autoridades equivalentes, Ramaphosa converteu essa recusa em um gesto político. Um gesto que não apenas afirma a África do Sul, mas também reivindica o continente — e, por extensão, o Sul Global — como sujeito pleno da ordem internacional emergente.





