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Malária: doença que acometeu Sebastião Salgado ainda mata meio milhão de pessoas por ano no mundo

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Malária: doença que acometeu Sebastião Salgado ainda mata meio milhão de pessoas por ano no mundo

Sebastião Salgado, falecido nesta sexta-feira, 23 de maio, aos 81 anos,, foi um dos maiores fotógrafos do nosso tempo. Com suas lentes carregadas de sensibilidade, capturou por mais de 40 anos retratos emblemáticos e inesquecíveis da degradação da condição humana e dos ataques sistemáticos ao meio ambiente, sem nunca abrir mão de uma estética visual rigorosa e original.

Mesmo sem a confirmação da causa exata de sua morte até a madrugada deste sábado, a notícia de que Salgado conviveu com complicações da malária e tomou medicamentos para tratá-la por cerca de 15 anos aumentou temporariamente o interesse no Brasil, na França e no mundo por essa febre infecciosa, considerada ainda hoje um grave problema de saúde pública no mundo. O maior fotógrafo brasileiro de todos os tempos teria contraído a doença em 1990, durante uma das viagens que fez a regiões isoladas do mundo para a elaboração de um de seus livros mais famosos, Gênesis.

Uma doença com números globais

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em 2023 foram registrados em 263 milhões de casos de malária em 83 países endêmicos, ante 252 milhões no ano anterior. Nesse mesmo período, as mortes pela doença recuaram de cerca de 600 mil para 597 mil. A maioria dos casos e mortes ocorrem na África Subsaariana. No entanto, as regiões no Sudeste Asiático, Mediterrâneo Oriental, Pacífico Ocidental e nas Américas delimitadas pela Organização Mundial da Saúde também estão em risco.

A malária é uma doença infecciosa febril, aguda e potencialmente grave. Ela é causada por protozoários parasitas que são transmitidos pela picada de mosquitos Anopheles (também chamado de “mosquito prego”) infectados por uma ou mais espécies de protozoários do gênero Plasmodium.

Existem cinco espécies de parasitas do gênero Plasmodium que causam malária em humanos, e duas delas — P. falciparum e P. vivax — constituem a maior ameaça. São responsáveis, respectivamente, pelas formas mais graves e mais prevalentes da doença.

No Brasil, a partir de 2019, o número de casos começou a cair e assim foi até 2023, quando foram registrados 140.265 casos no país, o que correspondeu a um aumento de 8,8% em comparação ao ano anterior (153.28 casos autóctones). O país registrou, em 2023, 63 mortes por malária, cerca de 10% a menos do que no ano anterior.

A maioria dos casos ocorre em áreas remotas, especialmente em regiões da Amazônia. Do total de casos registrados no país em 2023, mais de 80% foram de malária por P. vivax e outras espécies. A P. falciparum responde por poucos episódios no país.

A rede de diagnóstico rápido do Sistema Único de Saúde (SUS) oferece detecção em até 48 horas após o aparecimento dos primeiros sintomas e o tratamento. Há também vigilância farmacológica do Ministério da Saúde dos casos em que o parasito se torna resistente aos medicamentos administrados.

Alguns grupos populacionais correm um risco consideravelmente maior de contrair malária e desenvolver doenças com maior gravidade do que outros: bebês, crianças com menos de 5 anos de idade, mulheres grávidas e doentes com HIV/AIDS, bem como migrantes não imunes, populações em trânsito e viajantes. Os programas nacionais de controle da malária precisam tomar medidas especiais para proteger esses grupos populacionais, levando em consideração suas circunstâncias específicas.

Como a doença se instala no organismo

Após a picada do Anopheles, inicia-se um período de incubação de cerca de uma semana antes do aparecimento dos primeiros sintomas. Em geral, o quadro inicial apresenta febre alta intermitente acompanhada de calafrios intensos, sudorese, cefaleia e dores musculares. Em alguns casos, pode haver taquicardia, aumento do baço(esplenomegalia) e episódios de delírio.

Mas como o protozoário infecta e se reproduz no organismo? A picada da fêmea infectada do mosquito Anopheles injeta, na corrente sanguínea do ser humano, uma forma do parasita chamada esporozoíto (estágio do Plasmodium capaz de alcançar e invadir células do fígado). Esses esporozoítos migram até células do fígado responsáveis pelo metabolismo de nutrientes, síntese de proteínas e desintoxicação (os hepatócitos) e ali realizam um processo assexuado de reprodução em se dividem repetidamente para gerar centenas de merozoítos (estágio do Plasmodium que corresponde a uma pequena célula com núcleo único com capacidade de invadir as células vermelhas do sangue, as hemácias).

Quando o hepatócito se rompe, centenas de merozoítos são liberados na circulação e aderem aos glóbulos vermelhos por meio do reconhecimento molecular entre proteínas específicas do parasita e receptores na membrana da célula hospedeira (da pessoa infectada). Após essa ligação, o parasita forma uma rede de túbulos membranosos no glóbulo vermelho que funciona como um invólucro protetor para o seu desenvolvimento. Nessa fase, o parasito adota a forma de anel.

Dentro desse invólucro, o parasita digere a hemoglobina (proteína dos glóbulos vermelhos responsável pelo transporte de oxigênio), usando-a como fonte de aminoácidos. Enquanto cresce, o parasito modifica a permeabilidade da membrana do glóbulo vermelho para captar nutrientes e eliminar resíduos, mantendo a célula íntegra. Essa membrana é uma estrutura fina que envolve o glóbulo vermelho, mantém sua forma bicôncava e flexibilidade — fundamentais para a passagem pelos capilares (vasos sanguíneos muito finos) — e regula o transporte de íons, gases e outras moléculas entre o interior da célula e o plasma sanguíneo (a parte líquida do sangue).

Em cerca de 48 horas, cada ciclo produz de 8 a 32 novos merozoítos. Quando o glóbulo vermelho se rompe, a nova geração de parasitas é liberada na corrente sanguínea, reiniciando o ciclo. Assim a doença se instala.

Quando a malária se torna crônica

A malária pode evoluir para um quadro crônico principalmente devido à capacidade de algumas espécies, como P. vivax e P. ovale, de gerar hipnozoítos — formas latentes que permanecem no fígado e podem reativar meses após a infecção inicial. Além disso, o diagnóstico tardio, tratamentos incompletos e a resistência aos antimaláricos favorecem a persistência do parasita no organismo. Em áreas endêmicas, a exposição repetida e o desenvolvimento de imunidade parcial também levam a infecções assintomáticas de longa duração, reforçando o caráter crônico da doença.

A principal causa de morte em malária crônica é a forma grave da doença, especialmente a que é causada pelo Plasmodium falciparum. Ela pode levar a complicações como encefalopatia (lesão cerebral com chance de evoluir para coma e morte), insuficiência renal ou hepática, choque por queda da pressão arterial e edema pulmonar, que dificulta a respiração.

O diagnóstico e tratamento tardios, a falta de profissionais familiarizados com a malária em áreas não endêmicas e a ocorrência de coinfecções também contribuem para a mortalidade. Outros desfechos adversos incluem anemia grave, trombose e embolia, síndrome do desconforto respiratório do adulto e ruptura do baço, que leva a uma hemorragia interna grave e pode ser letal. Já a A “febre da água negra” (do inglês blackwater fever) é uma forma grave e rara de malária, quase sempre associada ao P. falciparum. É chamada assim porque na fase aguda, a urina fica muito escura por causa da eliminação maciça de hemoglobina pelos rins.

Na prática, enquanto se mantiverem as desigualdades socioeconômicas e ambientais, a malária continuará sendo um desafio prioritário das nações mais pobres. Sobretudo uma doença de países de baixa renda, demanda recursos para que sejam feitos avanços em pesquisa translacional, aprimoramento das redes de vigilância epidemiológica e consolidação de protocolos de tratamento baseados em evidências, garantindo distribuição equitativa de terapias eficazes. Apenas com investimentos consistentes em ciência, políticas de saúde integradas e cooperação internacional será possível interromper os ciclos de infecção crônica e reduzir a mortalidade por essa doença centenária.

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