Como os mosquitos formam aqueles intrigantes enxames ao entardecer? Uma pesquisa conduzida por nossa equipe do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat), da Universidade de São Paulo (USP), mostra que cada mosquito ajusta sua posição com base na proximidade entre seus vizinhos. Com simulações computacionais, conseguimos formar enxames similares aos naturais usando um modelo simples.
Outros modelos assumem que os mosquitos são atraídos por um ponto central, como se estivessem ligados a uma mola invisível. Mas essa perspectiva talvez possa ser melhor relacionada aos casos das nuvens de insetos formadas em volta de lâmpadas, que não se aplicam ao fenômeno de aglomeração natural e que analisaremos aqui.
Outra hipótese presume ainda que o mosquito consegue calcular a distância entre ele e o centro da nuvem.
A última possibilidade baseia-se na densidade de mosquitos presentes numa nuvem, avaliando o comportamento coletivo desses insetos. Assim, além de desafiar hipóteses tradicionais, os resultados ampliam a compreensão sobre as aplicações biológicas de conceitos da Física.
Como funciona o modelo
No estudo da nossa equipe, publicado na revista Brazilian Journal of Physics, usamos o conceito de vizinhança de Moore — uma abordagem comum em modelos computacionais, que permite simular o espaçamento entre os insetos numa nuvem.
O teste original consiste em usar a informação de posição dos oito vizinhos mais próximos, num plano imaginário de nove pontos. Para nossa abordagem tridimensional, calculamos o equivalente a um cubo de 3x3x3, ou seja, 26 vizinhos próximos a um mosquito central.
Essa divisão do espaço em grades baseia-se num conceito conhecido como discretização. Algo que não é necessário ou realista, mas suficiente para demonstrar a ideia de que os mosquitos não precisam de informação de longa distância para se auto-organizar em enxames. Cada mosquito ajusta sua posição com base na densidade do local, ou seja, no número de vizinhos próximos ocupados. Essa abordagem simples, mas robusta, reproduziu com precisão a formação e dispersão dos enxames, revelando padrões surpreendentes.
Transições de fase de segunda ordem
Nos resultados do modelo, aparecem duas fases: uma com enxames muito compactos e rígidos e outra fase com enxames muito dispersos. Apenas na região de transição entre essas duas fases (região crítica) é que o modelo é capaz de descrever nuvens de pernilongos reais. Assim, do ponto de vista científico, o principal achado do nosso estudo é que os enxames formados pelos mosquitos exibem um comportamento coletivo semelhante às chamadas “transições de fase de segunda ordem”, um conceito bem estabelecido na Física.
Esse tipo de transição de segunda ordem é caracterizada por uma transformação contínua de uma substância causada por um fator externo. Um exemplo clássico disso é o comportamento já muito estudado dos ímãs. À medida em que a temperatura aumenta, os átomos perdem gradualmente sua organização magnética. Até que, em um ponto crítico, o material deixa de ser magnético.
Em oposição a esse comportamento, as chamadas transições de primeira ordem envolvem mudanças abruptas das características físico-químicas de certas substâncias em estudo. E o melhor e mais antigo exemplo disso é muito simples: a passagem da água líquida para vapor, acelerada por calor intenso.
E o que isso tem a ver com o cérebro?
As transições de fase e criticalidade em sistemas biológicos são temas de pesquisa importantes na Física Estatística atual. Este assunto, que à primeira vista poderia parecer desconexo, chegou ao NeuroMat a partir da linha de pesquisa em Criticalidade no Cérebro (Brain Criticality), desenvolvida por nossa rede de colaboradores.
Nessa linha de pesquisa, mostramos que redes de neurônios podem processar informações de forma mais eficiente quando estão em estado crítico, no limiar de uma transição de fase. Nesse ponto, a rede se torna mais sensível a estímulos e consegue detectar sinais muito fracos e muito fortes ao mesmo tempo. Esse mecanismo pode ajudar a explicar como o cérebro interpreta cheiros e imagens, já que fenômenos semelhantes ocorrem no sistema olfativo e na retina. Além disso, propomos que a conexão elétrica entre neurônios melhora essa capacidade, permitindo que percebamos o mundo com mais precisão.
Nosso interesse por essa área de pesquisa (de movimentos coletivos de animais, como os mosquitos), deve-se à universalidade das ideias de Física Estatística que estão sendo aplicadas na Biologia Computacional. Vale lembrar que o ganhador do prêmio Nobel de Física em 2021, Giorgio Parisi, dedicou-se intensamente aos problemas de transições em redes neuronais. E, recentemente, em movimentos de bandos de estorninhos. Ainda mais recente, os laureados pelo prêmio Nobel de 2024 foram contemplados por suas ideias de transições de fase em redes neuronais.
Ver o tema das transições de fases em fenômenos tão distintos, desde neurônios até populações de mosquitos, mostra o quão conectadas estão as ideias teóricas na física e na biologia. Além disso, esses padrões são observados também na ecologia,epidemiologiae até mesmo em sociologia e economia, sugerindo que a organização coletiva na borda de uma transição de fase é um tema central em sistemas complexos.
Embora o estudo tenha avançado a compreensão teórica sobre o comportamento coletivo de mosquitos, ainda restam perguntas intrigantes: como os insetos detectam a densidade local e coordenam suas ações durante a transição? Esses mistérios continuam a fascinar e reforçam a importância de explorar fenômenos do cotidiano para entender leis universais da natureza. Acreditamos que nosso trabalho contribui para ampliar o alcance das ciências matemáticas e biológicas, ao conectar conceitos fundamentais da física a sistemas biológicos em diversas escalas.