Em agosto de 2025, o Brasil passou a ter acesso, no setor privado, a primeira forma de profilaxia pré-exposição (PrEP) de longa duração contra o vírus HIV no país, aplicada por via intramuscular a cada dois meses. Trata-se da substância cabotegravir, aprovada pela Anvisa em 2023.
À primeira vista, pode parecer apenas mais uma opção de medicamento. Mas, para especialistas em saúde pública e infectologia, o impacto potencial é muito maior. O cabotegravir pode inaugurar uma nova fase da prevenção ao HIV ao atacar um dos maiores gargalos da estratégia de PrEP oral: a dificuldade de adesão.
Estudos mostram que esquecimentos, estigma e dificuldades logísticas reduzem a adesão de forma significativa. Em alguns grupos-chave — como homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e jovens — a taxa de adesão gira em torno de 50% a 60%. Em contraste, os ensaios clínicos com o medicamento injetável apontaram taxas próximas a 95%, justamente por dispensar o uso diário de comprimidos. Essa diferença, aparentemente técnica, pode se traduzir em um divisor de águas em saúde pública. Afinal, uma medicação só cumpre seu papel se for de fato utilizada.
A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) vai avaliar a inclusão da forma injetável da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) de longa duração no SUS. Atualmente, o SUS oferecem medicamentos para a PrEP sob a forma de comprimidos, que devem ser tomados diariamente. O Ministério da Saúde já vem avaliando as possíveis vantagens do medicamento injetável, por meio da pesquisa ImPrEP CAB, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz.
O impacto esperado e a necessidade de garantir o acesso
De acordo com o Ministério da Saúde, em 2023 foram registrados cerca de 46,5 mil novos casos de HIV no Brasil. Modelos epidemiológicos sugerem que, se adotado em larga escala, o cabotegravir poderia prevenir até 385 mil infecções até 2033.
Além de salvar vidas, a medida teria forte impacto econômico. O tratamento antirretroviral ao longo da vida representa um custo alto e contínuo para o SUS. Prevenir infecções significa reduzir a pressão sobre o sistema de saúde, liberando recursos para outras áreas.
O entusiasmo com a chegada do cabotegravir esbarra em um obstáculo central: o preço, o que condiciona o acesso. Cada dose custa do cabotegravir injetável custa em torno de R$ 4 mil na rede privada, lembrando que o medicamento deve ser tomado a cada dois meses. Na prática, apenas uma parcela restrita da população — geralmente mais favorecida economicamente — terá acesso imediato à inovação. Já as populações mais vulneráveis, justamente as mais expostas ao risco de HIV, permanecem dependentes da PrEEP oral.
Para que o medicamento injetável chegue de forma equitativa, precisa ser incorporado ao SUS. O Brasil tem histórico de protagonismo em políticas de HIV, sendo um dos primeiros países em desenvolvimento a oferecer tratamento universal e gratuito ainda nos anos 1990. Esse capital político e técnico pode pesar a favor da inclusão do cabotegravir. Mas a decisão não é simples: o custo elevado exige negociação com a indústria farmacêutica e planejamento de sustentabilidade financeira.
Quem pode se beneficiar
Outro dado relevante vem de pesquisas de preferência. Entre jovens de 18 a 29 anos, 83% disseram preferir a injeção bimestral à pílula diária. Entre adolescentes de 15 a 19 anos, a principal justificativa foi justamente a praticidade: não precisar lembrar de tomar comprimidos nem carregar medicação. Esses números indicam que o Cabotegravir pode ter papel estratégico para populações-chave e para a nova geração, que concentra uma parcela significativa das novas infecções no Brasil.
O que virá depois dessa nova terapia? Novas drogas estão em desenvolvimento, como o Lenacapavir, que pode oferecer proteção por até seis meses com apenas uma aplicação subcutânea. Ensaios clínicos recentes mostraram 100% de eficácia em mulheres, sinalizando que o futuro da prevenção pode caminhar para intervalos cada vez mais longos entre doses. Isso levanta outra questão: o sistema de saúde brasileiro pode reunir condições para lidar com esse ritmo acelerado de inovações? Planejamento antecipado pode evitar que tecnologias promissoras fiquem restritas ao setor privado por anos, enquanto a epidemia segue ativa.
Do ponto de vista científico, o novo medicamento injetável representa uma oportunidade única. Há poucas dúvidas de sua eficácia. O que está em questão é a capacidade da rede pública de garantir que a inovação não se torne privilégio de poucos. No Brasil, onde o SUS já se destacou por oferecer acesso universal ao tratamento antirretroviral, a chegada da PrEP injetável testa a capacidade de manter esse protagonismo.
Incorporar a PreP injetável pode significar não apenas evitar milhares de novas infecções, mas reafirmar o compromisso com a equidade em saúde. A história da luta contra o HIV no Brasil sempre foi marcada por mobilização social, inovação científica e ousadia política. O cabotegravir pode ser o próximo grande passo na luta contra o HIV, mas apenas se for amplamente acessível para ter o impacto necessário.