Imagine chegar a um hospital com dor no peito e descobrir que pode levar horas — ou até dias — para receber o atendimento adequado. Para pacientes com suspeita de infarto agudo do miocárdio, esse tempo de espera pode ser fatal. Agora imagine que esse mesmo hospital consiga reduzir em um terço o tempo de espera, ampliar em quase 50% o número de atendimentos e aumentar, significativamente, os procedimentos realizados, sem depender de grandes investimentos em infraestrutura.
Essa é a realidade que começamos a construir no setor de hemodinâmica do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Nosso estudo, publicado no International Journal of Healthcare Management, mostra que é possível transformar o cuidado em cardiologia por meio da reorganização de processos e da adoção de práticas de Saúde Baseada em Valor (do inglês, Value-Based Healthcare – VBHC).
O coração e a urgência do cuidado
As doenças cardiovasculares continuam sendo a principal causa de morte no mundo, responsáveis por cerca de 17,9 milhões de óbitos anuais — o que corresponde a 32% de todas as mortes globais. No Brasil, a situação não é diferente: o infarto agudo do miocárdio representa a principal causa de mortalidade, com cerca de 400 mil casos por ano.
Os serviços de hemodinâmica são fundamentais nesse cenário, pois realizam procedimentos como cateterismo cardíaco e angioplastia — intervenções capazes de diagnosticar e tratar obstruções coronárias de forma rápida e eficaz. No entanto, no sistema público, esses setores enfrentam desafios crônicos: escassez de leitos, burocracia no agendamento, equipes sobrecarregadas e fluxos de atendimento fragmentados. Isso resulta em longas filas, diagnósticos atrasados e maior risco de complicações para os pacientes.
O problema vai além da falta de recursos
É comum associar as dificuldades do SUS à carência de equipamentos ou profissionais. De fato, esses fatores existem. Mas há outro aspecto, menos visível, que pesa muito: a forma como os processos são organizados. Em muitos casos, a falta de integração entre sistemas, a ausência de protocolos padronizados e a sobreposição de tarefas administrativas geram gargalos que consomem tempo e energia das equipes.
Esses obstáculos aumentam os custos do cuidado, reduzem a eficiência e dificultam que o paciente chegue ao tratamento certo na hora certa. Não se trata apenas de falta de dinheiro: trata-se de gestão.
Proposta: métodos de engenharia e gestão em saúde
Foi com esse diagnóstico que nossa equipe decidiu testar uma estratégia diferente. Em vez de apenas medir quantos procedimentos eram realizados ou quanto custavam, buscamos reorganizar o serviço com foco no que realmente gera valor para o paciente. Essa lógica segue a proposta de Michael Porter e Elizabeth Teisberg, que defendem que o valor em saúde deve ser medido pelos desfechos obtidos em relação aos custos totais do cuidado, e que estabelecemos como guia de implementação.
No Hospital Pedro Ernesto, unimos essa perspectiva a ferramentas de engenharia e gestão, como modelagem de processos, o Método de Identificação, Análise e Solução de Problemas (Miasp), incluindo ferramentas da Teoria das Restrições e técnicas de gestão da qualidade, além do Time-Driven Activity-Based Costing (TDABC), que permite calcular o custo e o tempo de cada etapa do processo.
Isso significou mapear detalhadamente os fluxos do setor, identificar gargalos, propor ajustes em protocolos e integrar diferentes sistemas de agendamento e registros. Também foi necessário reorganizar a coordenação dos leitos de UTI e criar rotinas para garantir que os pacientes chegassem à hemodinâmica com todos os exames necessários já realizados.
Resultados que mostram impacto real
Os efeitos dessas mudanças foram rápidos e mensuráveis. O número de pacientes que conseguiu acesso ao setor de hemodinâmica aumentou em 46%. O tempo médio de espera caiu em 27%. E a quantidade de procedimentos coronários realizados cresceu em 43%.
Esses resultados mostram que não é preciso esperar grandes reformas ou equipamentos milionários para melhorar a assistência. Muitas vezes, ganhos expressivos podem vir de mudanças organizacionais, da integração entre equipes e da redução de desperdícios.
Além de beneficiar os pacientes, essas melhorias também tornam o sistema mais sustentável, já que evitam internações prolongadas, reduzem a sobrecarga dos profissionais e otimizam o uso de recursos já disponíveis.
Lições para o futuro da saúde pública
O estudo realizado no Hupe traz algumas lições importantes para gestores, profissionais e formuladores de políticas públicas. A primeira é que investir em gestão de processos pode gerar benefícios comparáveis, ou até superiores, aos de expandir a infraestrutura física. Em setores de alta complexidade, como a cardiologia, o gargalo muitas vezes não está no número de equipamentos, mas na forma como o atendimento é organizado.
Outra lição é a importância de adotar uma mentalidade de valor em saúde. Isso significa olhar para o paciente e seus resultados, e não apenas para a quantidade de procedimentos realizados. Essa mudança de foco pode ajudar a reduzir desigualdades e direcionar melhor os recursos do SUS.
Também aprendemos que monitorar indicadores de acesso, tempo de espera e taxa de procedimentos é fundamental. Sem dados confiáveis, não é possível identificar gargalos nem avaliar o impacto das intervenções. A cultura de gestão baseada em evidências precisa se fortalecer na saúde pública brasileira.
Por fim, a experiência sugere que o modelo pode ser replicado em outros hospitais e serviços especializados, desde que adaptado ao contexto local. O baixo custo das mudanças — baseadas mais em reorganização do que em investimentos — aumenta a viabilidade dessa estratégia em diferentes regiões do país.
Conclusão: gestão é também cuidado em saúde
Transformar a saúde pública exige mais do que recursos financeiros. Exige inovação na forma de pensar o cuidado, integrar equipes, reduzir burocracias e colocar o paciente no centro. O caso da hemodinâmica do Hospital Universitário Pedro Ernesto mostra que mudanças de gestão podem salvar vidas, trazendo eficiência e qualidade ao SUS. Melhorar processos não é apenas burocracia. É investir em um futuro no qual o SUS consiga oferecer um serviço que promova mais qualidade de vida, mesmo diante de recursos limitados.
A publicação deste artigo foi financiada pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes).