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Mesmo com o Brasil fora do mapa da fome, ainda falta biodiversidade no prato do brasileiro, e insegurança alimentar persiste

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Mesmo com o Brasil fora do mapa da fome, ainda falta biodiversidade no prato do brasileiro, e insegurança alimentar persiste

No fim do último mês de julho, a notícia repercutiu no país inteiro: o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome. Após registrar 4,7% da população em risco de subnutrição entre 2020 e 2022, o país retornou ao patamar inferior a 2,5%, limite adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para esse indicador. Os dados são do relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2025 (SOFI 2025), apresentado em 28 de julho, durante a 2ª Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU (UNFSS+4). Sair do mapa da fome é um avanço importante — mas ampliar a segurança alimentar exigirá valorizar a biodiversidade brasileira.

O SOFI é produzido por cinco agências da ONU: a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Programa Mundial de Alimentos (WFP), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). O relatório reúne informações sobre fome, desnutrição, obesidade, insegurança alimentar e os impactos da inflação nos alimentos.

Estar no Mapa da Fome significa que uma parcela expressiva da população não tem acesso regular à quantidade mínima de alimentos necessária para uma vida saudável. O Brasil havia deixado esse mapa entre 2013 e 2015, mas voltou a figurar nele em 2019, com 4,1% da população em situação de subnutrição — índice que subiu para 4,7% no triênio seguinte.

Dois conceitos: insegurança alimentar e subnutrição

Para compreender esses números, é importante diferenciar dois conceitos frequentemente usados de forma intercambiável, mas que não são iguais: “insegurança alimentar” e “subnutrição”. A insegurança alimentar, medida no Brasil pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, capta a percepção das famílias sobre acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade adequadas. Trata-se, portanto, de um indicador mais subjetivo, baseado nas respostas das pessoas a questionários, e que, além da quantidade, também engloba a qualidade dos alimentos que compõem o prato dos brasileiros.

Já a subnutrição é estimada pela Prevalência de Subalimentação (em inglês, Prevalence of Undernourishment ou PoU), um indicador objetivo que mede a proporção da população cujo consumo habitual de calorias é inferior ao mínimo necessário para manter uma vida ativa e saudável. Ao contrário da escala de insegurança alimentar, a PoU não se baseia em entrevistas, mas em cálculos realizados por agências internacionais, como a FAO, a partir de dados demográficos e do balanço de produção e comércio de alimentos de cada país.

O método parte de duas estimativas principais: a quantidade total de calorias necessária para atender às necessidades de toda a população e a disponibilidade de calorias no mercado interno, considerando a produção nacional, as importações e as exportações. A diferença entre o que seria necessário e o que está disponível permite estimar o número de pessoas que não têm suas necessidades energéticas atendidas.

O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) está previsto no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No Brasil, foi incorporado ao artigo 6º da Constituição em 2010, por meio da Emenda Constitucional nº 64. O DHAA garante acesso físico e econômico a alimentos e aos meios para obtê-los, como renda ou terra, e se articula à Segurança Alimentar e Nutricional, definida pela Lei Orgânica de 2006 (Losan). Por isso, a saída do Brasil do Mapa da Fome não é um dado trivial: trata-se, sobretudo, do cumprimento de um direito fundamental.

Insegurança alimentar é maior em zonas rurais

O problema da fome, no entanto, não está apenas na oferta de alimentos: é preciso que as pessoas consigam acessá-los. No Brasil, por exemplo, até 2022, embora o número absoluto de pessoas famintas seja maior nas áreas urbanas, especialmente na região sudeste, a insegurança alimentar proporcionalmente atinge de forma mais intensa os habitantes das zonas rurais. Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) mostram que, em 2022 e 2023, a produção e colheita de grãos no Brasil alcançaram 41,5 milhões de toneladas, um recorde nacional. Ainda assim, apesar de o país ser um grande produtor de soja, carne e milho, a insegurança alimentar permaneceu como um problema persistente.

Outro ponto destacado pelo relatório SOFI diz respeito ao impacto da inflação sobre o preço dos alimentos como uma preocupação central, especialmente para países de baixa e média renda, mais vulneráveis às oscilações dos mercados internacionais.

Insegurança alimentar severa diminuiu

No caso brasileiro, houve avanços importantes nos indicadores de acesso a alimentos saudáveis. A proporção de pessoas que não tinham condições de adquiri-los caiu de 29,8% em 2021 para 23,7% em 2024. Outro dado relevante é a redução da prevalência de insegurança alimentar severa, indicador que leva em consideração, não apenas a disponibilidade de calorias para alimentar a população, mas a qualidade dos alimentos acessados (em termos sanitários, nutricionais e culturais): entre 2022 e 2024, esse índice foi de 3,4%, uma queda expressiva em relação ao pico de 7,3% registrado entre 2019 e 2021.

Nesse contexto, a biodiversidade na produção de alimentos desempenha um papel essencial para a segurança alimentar, pois garante a resiliência das produções e maior diversidade de alimentos disponíveis. Ela contribui para a fertilidade, a estrutura, a qualidade e a saúde do solo; garante a polinização das lavouras; e auxilia no controle de pragas. Também promove a melhoria da qualidade da dieta, eleva a produção agrícola e os rendimentos futuros, possibilita o desenvolvimento de novas culturas e preserva a produtividade de ecossistemas marinhos. A variedade genética fortalece a adaptação dos sistemas agroalimentares frente a ameaças como patógenos e mudanças climáticas.

Em última instância, a diversidade de alimentos in natura e minimamente processados disponíveis no mercado interno também influencia diretamente as escolhas alimentares da população. Uma alimentação mais diversa pode ser uma aliada para mitigar questões complexas e atuais, como a obesidade, cujo avanço global tem sido motivo de preocupação entre os pesquisadores responsáveis pelo relatório SOFI.

Apenas um em cada 100 brasileiros consome regularmente alimentos biodiversos

Pesquisas mostram que, no Brasil, a rica biodiversidade da produção alimentar não se reflete nos padrões de consumo da população. Essa diversidade inclui, por exemplo, o aproveitamento de cogumelos, carnes de caça e plantas alimentícias não convencionais. Um estudo de Sávio Marcelino Gomes e colaboradores, publicado em 2023 na Scientific Reports, aponta que apenas 1 em cada 100 brasileiros consome regularmente alimentos biodiversos. O dado evidencia um descompasso entre a abundância de recursos naturais do país e o que, de fato, chega ao prato dos brasileiros.

Além disso, os sistemas alimentares — que abrangem todas as etapas, processos e atores do plantio ao preparo, consumo e descarte dos alimentos — são responsáveis por cerca de 70% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Repensar esses modelos, com foco na diversidade e na sustentabilidade, é fundamental para garantir a produção de alimentos nas próximas décadas.

Estudos indicam a necessidade de adotar medidas estratégicas para proteger a biodiversidade nos sistemas alimentares. Entre elas, destacam-se: o investimento em programas educacionais que incentivem a elaboração de planos de transição eficazes junto à população; o fomento à pesquisa científica voltada ao aprofundamento do conhecimento sobre a biodiversidade alimentar, incluindo a identificação, o cultivo e o processamento de alimentos; e, por fim, a implementação de um modelo de governança participativa nos sistemas alimentares, capaz de orientar mercados e políticas públicas em favor de uma produção que valorize a biodiversidade.

Diante de um cenário global marcado pela sobreposição de crises sociais, de saúde, geopolíticas e ambientais, assegurar o direito humano à alimentação exige uma abordagem integrada. Essa abordagem deve considerar não apenas os fatores sociais e econômicos, mas também, e cada vez mais, a urgência climática e o papel estratégico da biodiversidade na construção de sistemas alimentares resilientes e sustentáveis.

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