A criação de corredores humanitários tem sido uma das respostas internacionais diante de crises graves, especialmente em contextos de bloqueio e guerra. No entanto, quando estabelecidos em território terrestre, esses corredores enfrentam barreiras quase intransponíveis, que incluem a presença de checkpoints, alfândegas, muros e a plena soberania dos Estados sobre suas fronteiras.
Nesse cenário, a experiência da Flotilha Global Sumud emergiu como uma alternativa estratégica, utilizando o espaço marítimo para operacionalizar um corredor humanitário civil e desafiar o bloqueio naval israelense a Gaza, em vigor desde 2007 e intensificado para um “bloqueio total” em outubro de 2023.
A viabilidade dessa iniciativa decorria de sua organização no mar, onde o regime jurídico internacional e a ausência de barreiras físicas absolutas criam um ambiente político singular que permite a contestação de bloqueios.
A flotilha, cujo nome deriva de ṣumūd — termo árabe que significa “perseverança” ou “resiliência” — foi lançada em setembro de 2025 como uma resposta da sociedade civil à intensificação do conflito e ao genocídio em Gaza. Organizada por uma coalizão de entidades, a missão foi descrita como a maior da história, envolvendo mais de 40 embarcações e milhares de participantes de mais de 44 países.
Entre os participantes estavam figuras notáveis como a ativista ambiental Greta Thunberg, a ex-prefeita de Barcelona Ada Colau, parlamentares europeus e uma delegação brasileira de 17 integrantes, incluindo a deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) e o ativista Thiago Ávila.
Interceptação e bloqueio
No dia 2 de outubro, porém, a flotilha foi interceptada a cerca de 70 milhas náuticas (aproximadamente 130 km) da costa de Gaza, ainda em águas internacionais.
As forças israelenses abordaram todas as 44 embarcações da flotilha, cortando comunicações e levando os ativistas a portos israelenses para iniciar processos de extradição. O governo de Israel alegou que a flotilha se aproximava de uma “zona de combate ativa” e violava um “bloqueio naval legal”, afirmando, sem apresentar evidências públicas, que alguns organizadores do movimento teriam vínculos com o Hamas.
Por outro lado, a organização da flotilha descreveu a ação como um ataque ilegal a uma missão pacífica e não violenta, relatando que uma embarcação foi “deliberadamente” atingida e outras foram atacadas com canhões de água.
Antes mesmo da abordagem final, a missão já havia relatado ataques de drones com granadas de atordoamento e substâncias químicas em águas internacionais, próximas à Grécia e à Tunísia.
A interceptação da Global Sumud provocou condenações imediatas em várias partes do mundo. Organismos como especialistas da ONU, a Anistia Internacional e a Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF) consideraram a captura ilegal, uma vez que o direito internacional garante a livre passagem de missões humanitárias pacíficas e proíbe ataques contra essas embarcações.
Países como a Colômbia, Malásia, Venezuela e Turquia também condenaram Israel com veemência, chamando atitude de “crime internacional”. Já Irlanda, Alemanha e Kuwait expressaram preocupação e solicitaram a garantia da segurança de seus cidadãos detidos.
Reação brasileira
Durante a ação, pelo menos 10 brasileiros e um argentino residente no Brasil foram capturados. O Itamaraty emitiu um comunicado formal repudiando a ação militar israelense por violar direitos e pôr em risco a integridade física de manifestantes pacíficos.
O comunicado reafirmou que Israel é o único responsável pela segurança das pessoas detidas e exigiu o fim imediato e incondicional das restrições à entrada de ajuda humanitária em Gaza, cobrando o cumprimento das obrigações de Israel perante o direito humanitário.
Símbolo de resistência
Apesar de bloqueada, a Flotilha Sumud Global segue simbolizando um poderoso instrumento político internacional, cuja mobilidade marítima descentralizada se converte em pressão diplomática direta sobre Estados costeiros e atores globais.
A iniciativa buscava não apenas fornecer auxílio humanitário simbólico e material — incluindo alimentos, água potável, medicamentos e brinquedos — mas também garantir a abertura de um corredor marítimo para Gaza, onde a população enfrenta condições extremas de escassez e sofrimento.
O mar como espaço diferenciado de circulação e o enquadramento jurídico
A opção pelo mar como cenário de ações humanitárias carrega um sentido político profundo.
Diferentemente do espaço terrestre, onde a soberania tende a se afirmar de forma rígida e quase absoluta, o domínio marítimo é regido por um intrincado sistema de normas internacionais que fragmentam e relativizam seu controle. Há um termo para isso: chama-se “soberania fluida”.
Neste contexto o movimento da flotilha, ainda que interrompido em condições consideradas ilegais sob a perspectiva do Direito Marítimo e do Direito Internacional, não pode ser reduzido ao transporte de embarcações e suprimentos.
Mais do que uma ação logística, constitui um gesto político que se apropria da permeabilidade do mar para confrontar a rigidez das fronteiras terrestres e a lógica consolidada da soberania estatal.
Ao navegar nesse espaço “fluido”, a flotilha inscreve-se como um processo político em movimento, que não apenas denuncia o bloqueio em Gaza, mas também projeta formas alternativas de conceber circulação, soberania e solidariedade internacional.
Nesse sentido, a ação remete diretamente aos princípios da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, 1982), que estabelece os marcos legais para o uso do oceano e delimita os limites da autoridade estatal sobre ele.
O que é a CNUDM que qual a sua constituição
A CNUDM constitui um marco jurídico fundamental para a delimitação e regulamentação das zonas marítimas, sendo essencial para a estratégia de atuação de flotilhas. Ela estabelece, entre outras distinções, o Mar Territorial, que se estende até 12 milhas náuticas da costa. E confere ao Estado costeiro soberania plena para permitir o trânsito de embarcações estrangeiras, desde que não comprometam a paz, a ordem ou a segurança do Estado. Atividades como manobras militares, coleta de dados e poluição intencional são consideradas violações desse direito.
Já a Zona Econômica Exclusiva (ZEE), que alcança até 200 milhas náuticas, não garante soberania total, mas assegura ao Estado costeiro direitos exclusivos sobre a exploração de recursos naturais, mantendo, contudo, as liberdades de navegação e sobrevoo para os demais Estados, em conformidade com os princípios do alto-mar.
Por fim, as Águas Internacionais são áreas marítimas onde Estados costeiros específicos são responsáveis por coordenar e realizar operações de busca e salvamento.
Nessas águas, de livre acesso a embarcações civis, os Estados costeiros têm a obrigação de resgatar embarcações em perigo e patrulhar a região, mas não podem bloquear livremente o trânsito civil.
Esse arranjo cria uma forma de soberania atenuada, oferecendo condições jurídicas e materiais que tornam possíveis corredores humanitários inviáveis em terra. Esse era o arranjo que deveria estar acontecendo com a Flotilha Sumud Global. Israel teria a obrigação de justificar juridicamente qualquer tentativa de interceptação ou bloqueio – mas não o fez.
Consequências da interceptação reforçam força política da mobilidade marítima
Na última quinta-feira, 2 de outubro de 2025, o jornal turco Sabah informou que 45 embarcações civis partiram da cidade de Arsuz, no sudeste da Turquia, em direção ao Mediterrâneo oriental, com o objetivo de apoiar o movimento realizado pela Global Sumud Flotilla e desafiar o bloqueio israelense à Faixa de Gaza.
Vídeos divulgados nas redes sociais mostraram dezenas de pequenos barcos transportando ativistas portando bandeiras turcas e palestinas, reforçando o caráter simbólico e humanitário da missão.
A iniciativa representa mais uma demonstração concreta de solidariedade internacional à população de Gaza, buscando levar ajuda humanitária enquanto contesta o bloqueio considerado ilegal por diversos organismos internacionais.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, condenou qualquer interceptação israelense às embarcações, qualificando-a como “pirataria” (ANS Brasil), enfatizando o apoio do governo turco à missão civil e reforçando a importância da mobilização de cidadãos comuns na pressão internacional por acesso humanitário em Gaza.
Em contrapartida, o governo sionista e seus apoiadores classificam a iniciativa como uma provocação e um suposto apoio ao Hamas, alegando que seus organizadores, como Saif Abu Keshk e Yahia Sarri, teriam vínculos com o Hamas e a Irmandade Muçulmana.
Segundo essa narrativa, a missão serviria como fachada para legitimar redes terroristas. No entanto, tais conexões não foram confirmadas por organismos internacionais, e as supostas provas de financiamento pelo Hamas nunca foram apresentadas publicamente.
Conclusão
A experiência da Flotilha Global Sumud demonstra que, quando as vias terrestres são hermeticamente fechadas, o mar se torna um espaço estratégico privilegiado para a ação humanitária e a contestação política. A iniciativa explora a singularidade jurídica do direito do mar para desafiar um bloqueio que grande parte da comunidade internacional considera ilegal e uma forma de punição coletiva.
Mais do que apenas entregar ajuda humanitária, a flotilha busca expor a falha dos governos em garantir o direito internacional e humanitário, forçando uma resposta da comunidade internacional. A jornada da flotilha, marcada por solidariedade, acusações de terrorismo, ataques de drones e a inédita escolta de marinhas europeias, evidencia a transformação de uma ação da sociedade civil em um complexo impasse diplomático e militar, onde a luta pela dignidade humana navega em águas turbulentas.