Authors
Disclosure statement
Paul Raad fundou e coordena o instituto Impacto, focado na convivência harmônica entre humanos pecuaristas e grandes felinos.
Larissa Rodrigues é bolsista da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Lígia Souza Lima Silveira da Mota does not work for, consult, own shares in or receive funding from any company or organization that would benefit from this article, and has disclosed no relevant affiliations beyond their academic appointment.
Partners
Universidade Estadual Paulista provides funding as a founding partner of The Conversation BR.
DOI
No coração do Pantanal Norte, no Mato Grosso (MT) — entre planícies alagadas, florestas de galeria que acompanham os rios e a poeira vermelha da estrada Transpantaneira — uma técnica inédita abre um novo capítulo na pesquisa sobre a onça-pintada (Panthera onca), um dos predadores mais emblemáticos das Américas. Pela primeira vez no Pantanal Norte, foi possível coletar amostras de pelos sem qualquer contato direto com os animais — sem capturá-los, sedá-los ou sequer tocá-los. Um avanço pioneiro que pode transformar a forma como a ciência estuda grandes felinos em vida livre.
A inovação foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores do Instituto Impacto, organização voltada à coexistência entre os predadores e as comunidades tradicionais, em parceria com a Universidade Estadual Paulista (UNESP). Conduzido na Pousada Piuval, área privada de 7.200 hectares que concilia pecuária e ecoturismo, o estudo respeitou os protocolos éticos e legais (CEUA/UNESP e SISBIO), demonstrando que é possível produzir ciência de alta qualidade com total respeito ao bem-estar animal e aos ciclos naturais.
Desde 2022, nosso grupo de pesquisadores vêm coletando amostras fecais no local para avaliar a presença de onças, sua dieta e carga parasitária. Embora as suas fezes sejam excelentes para algumas análises, oferecem limitações principalmente para estudos estruturais ou toxicológicos. Onças são animais solitários e territoriais, que se comunicam por marcações olfativas usando fezes, urina, arranhões no solo, marcas em árvores e esfregando o corpo. Esses comportamentos naturais, especialmente o de se esfregar, frequentemente resultam na deposição de pelos em pontos estratégicos.
Aproveitando essas características do comportamento das onças, os pesquisadores elaboraram e testaram um método passivo de coleta de pelos usando tapetes de fibra sintética posicionados em trilhas naturais de onças. Armadilhas fotográficas foram previamente instaladas para identificar os locais de maior movimentação. Nenhum tipo de isca ou atrativo foi utilizado, garantindo que o método fosse realmente não invasivo e livre de estresse para os animais. Após a confirmação da passagem de uma onça por um dos tapetes, os pesquisadores conseguiram recolher o material desejado para análise.
Mina de informações
Desse modo, o que poderia ser considerado apenas um movimento — como uma pata roçando uma fibra ou o flanco de um felino tocando de leve um tapete — transformou-se numa poderosa janela para o estudo da biologia do animal. Os pelos coletados permitiram diversas análises laboratoriais que, de outro modo, exigiriam o emprego de técnicas invasivas.
Pelos e cabelos são reconhecidos como bioindicadores eficazes de exposição ambiental, tanto em humanos quanto em animais silvestres. A detecção de elementos tóxicos, mesmo em uma amostragem limitada, valida o uso desse método como uma ferramenta viável para o monitoramento ecotoxicológico de longo prazo.
No caso das onças-pintadas (ou jaguares, como também são conhecidas), a validação microscópica e molecular confirmou o sucesso do método. A microscopia eletrônica de varredura revelou estruturas intactas, com cutícula e córtex bem preservados, indicando que a qualidade do pelo era adequada para estudos genéticos, químicos e isotópicos (analisam isótopos para entender dieta, origem ou movimentação de animais e processos ambientais). A amplificação do gene AML (identifica o sexo da onça) também tfoi bem-sucedida, e a eletroforese (técnica que separa fragmentos genéticos em um gel para verificar sua integridade) confirmou que o material era adequado para estudos moleculares.
Esses achados são muito significativos. Os dados genéticos permitem identificar indivíduos, estudar estrutura e diversidade populacional e até investigar relações de parentesco — dados fundamentais para a conservação dessa espécie vulnerável. Além disso, testes toxicológicos revelaram níveis elevados dos minerais cádmio e manganês em comparação com os valores de referência. A presença dessas substâncias, em quantidades consideradas tóxicas, em predadores do topo da cadeia, pode indicar contaminação ambiental associada à atividade de garimpo de ouro nas proximidades. Isso acende um importante sinal de alerta, pois tais contaminantes afetam tanto as onças quanto as comunidades humanas que compartilham o mesmo ecossistema.
Ecologia alimentar
A análise de isótopos estáveis dos pelos também forneceu insights sobre a ecologia alimentar das onças e o uso do território. Mesmo com um conjunto pequeno de dados, o método demonstrou seu potencial para informar estudos futuros sobre como as mudanças ambientais, a degradação do habitat e a presença humana afetam a dieta e o comportamento desses felinos. Nosso estudo descrevendo todo esse processo foi publicado recentemente pela revista científica Animals.
Ao eliminar a necessidade de capturar ou manipular os animais, o método reduz o estresse, o custo e a complexidade logística, sendo acessível para iniciativas de pesquisa menores. É uma alternativa ética, replicável e eficiente para o monitoramento de populações de onças — com potencial para ser aplicada a outros grandes carnívoros em diferentes biomas.
Num cenário global em que a conservação da biodiversidade precisa se alinhar com práticas de pesquisa éticas e recursos limitados, essa inovação brasileira representa um novo paradigma. Democratiza a coleta de dados biológicos e abre portas para estratégias de conservação mais inclusivas e sustentáveis.
A mensagem é muito clara: para entender uma onça, não é preciso capturá-la. Basta saber por onde ela anda e ter sensibilidade para ouvir os rastros que ela deixa pelo caminho.
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