As mudanças climáticas estão alterando silenciosamente o cenário da saúde pública na Amazônia. As frequentes secas, enchentes, desmatamentos e demais problemas ambientais podem levar ao surgimento de novas doenças ou ao avanço de doenças já controladas.
Um caso emblemático é o da Doença de Chagas, que mesmo com os avanços recentes nos estudos sobre sua biologia e controle de transmissão, podem representar novamente um desafio para nosso sistema de saúde em virtude das alterações que estão sendo realizados nas paisagens.
Um estudo publicado recentemente na revista Medical and Veterinary Entomology por mim, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e por uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto Evandro Chagas, Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e Universidade de Bristol deixa um alerta claro: o aquecimento global pode facilitar a expansão dos barbeiros, vetores da Doença de Chagas, para novas áreas da floresta.
A doença de Chagas
A doença, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, é transmitida principalmente por insetos conhecidos como barbeiros. A Doença de Chagas (DC) existe há milhões de anos como uma doença em animais silvestres, que passou a ser transmitida ao homem, de forma acidental, a partir da invasão dos ambientes silvestres por populações humanas.
Embora seja antiga, a Doença de Chagas em humanos só foi descrita em 1909, a partir da descoberta realizada pelo médico brasileiro Carlos Chagas, que detectou o parasito em uma criança de dois anos de idade na cidade de Lassance, no interior de Minas Gerais.
A descoberta foi considerada um marco na história da medicina pelo descobrimento simultâneo do vetor (o barbeiro), de alguns dos hospedeiros silvestres e domésticos, do agente etiológico da doença (o protozoário Trypanosoma cruzi) e da patologia associada à infecção.
A DC é endêmica na América Latina. Ela é atribuída, em sua origem, às áreas rurais e às populações com condições de vida precárias. Ademais, a forma como a população humana explora e ocupa o ambiente está fortemente relacionada à dinâmica das doenças transmitidas por vetores, o que pode resultar, por exemplo, na emergência da DC em áreas anteriormente consideradas livres da enfermidade.
Em 2006, o Brasil recebeu da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) a certificação de interrupção da transmissão vetorial pelo barbeiro Triatoma infestans (o principal vetor no país) e por hemotransfusão. Apesar disso, a doença ainda é um desafio de saúde pública, sobretudo em regiões com moradias precárias, principalmente como as encontradas nas regiões mais podres do país.
Embora muitos infectados permaneçam assintomáticos por anos, cerca de um terço desenvolve formas clínicas graves da doença, como a forma cardíaca crônica e o megacólon, caracterizado pela dilatação do intestino grosso. Entre 1999 e 2007, o Brasil registrou uma média anual de cerca de 6 mil mortes relacionadas à Doença de Chagas, representando aproximadamente 43% de todos os óbitos por essa enfermidade na América Latina. A DC é uma das principais causas de morte entre as doenças tropicais negligenciadas no país.
Projeções preocupantes
Nosso estudo analisou mais de 11 mil registros de ocorrência de 55 espécies de barbeiros. Utilizamos uma técnica chamada modelagem de nicho ecológico, que cruza dados biológicos e ambientais, para prever como esses vetores podem se deslocar até 2080 sob diferentes cenários climáticos.
Os resultados indicam uma tendência preocupante: os barbeiros devem expandir sua distribuição na Amazônia, especialmente em áreas já vulneráveis. Esse movimento pode surpreender os sistemas de saúde despreparados, afetando populações que já enfrentam desigualdades e condições precárias de moradia.
O mapa ao lado mostra a projeção de áreas com aumento previsto de ocorrência de barbeiros até 2080, considerando um cenário de mudanças climáticas mais intensas. As áreas em amarelo indicam regiões com estabilidade na presença dos vetores, sem variação significativa. As áreas em verde representam regiões onde se prevê uma redução na ocorrência de barbeiros. Já as áreas em vermelho destacam os locais com aumento previsto na presença dos vetores da Doença de Chagas, apontando zonas que podem se tornar mais vulneráveis à transmissão no futuro.
A pesquisa identifica áreas da Amazônia que poderão se tornar favoráveis à presença de vetores devido às mudanças climáticas, alertando para o aumento do risco em regiões hoje consideradas seguras. Essas informações permitem antecipar estratégias de prevenção, vigilância e fortalecimento do sistema de saúde. Mesmo sem estimar quantos serão afetados, o estudo mostra onde o risco pode crescer e isso já é um passo crucial para proteger populações vulneráveis.
Essa mesma abordagem pode ser aplicada a outras enfermidades tropicais, como dengue, leishmaniose e malária, gerando dados que podem subsidiar políticas públicas de saúde. Assim como existem mapas de risco para enchentes e queimadas, podemos ter mapas para doenças como a de Chagas, possibilitando um cenário de previsibilidade e o desenvolvimento de estruturar e de preparação antes que o problema se acentue ou possa virar uma calamidade pública.
Uma questão de saúde climática
As projeções do nosso estudo reforçam a necessidade de políticas integradas de saúde, meio ambiente e adaptação às mudanças climáticas.
A Amazônia enfrenta múltiplos desafios de degradação ambiental, e a eles se soma o risco crescente de doenças infecciosas associadas ao clima. E as populações mais afetadas serão aquelas já vulneráveis. Em regiões com pouco acesso a serviços de saúde, saneamento e moradia digna, o avanço dos barbeiros representa mais um obstáculo à justiça social.
Mas há caminhos para a ação. O estudo oferece dados que podem orientar estratégias preventivas. É possível antecipar cenários de risco, fortalecer a vigilância entomológica (monitoramento e controle dos vetores), planejar campanhas educativas e alocar melhor os recursos de saúde.
Um dos principais dados gerados pelo estudo é o mapeamento das áreas da Amazônia que podem ter aumento na presença de barbeiros vetores da Doença de Chagas até 2080, especialmente sob cenários de mudanças climáticas intensas. Por exemplo, regiões que hoje apresentam baixa ocorrência desses insetos, como trechos do oeste do Pará e norte do Amazonas, podem se tornar áreas de risco no futuro.
Esses dados permitem direcionar ações preventivas, como o fortalecimento da vigilância entomológica, campanhas educativas em comunidades vulneráveis e melhorias nas condições habitacionais antes que a transmissão da doença se intensifique nessas regiões. Trata-se de uma ferramenta estratégica para antecipar riscos e evitar surtos futuros.
Com base científica sólida, conseguimos entender melhor os riscos e agir de forma estratégica.
A próxima Conferência do Clima da ONU (COP 30), marcada para ocorrer em Belém, traz uma oportunidade histórica. Precisamos colocar a saúde climática no centro das discussões. A crise ambiental também é uma crise de saúde e justiça social. E a ciência tem muito a contribuir com soluções baseadas em dados e equidade.