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Mudanças na prisão preventiva são armadilhas que fomentam facções e ganância por privatização carcerária

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Mudanças na prisão preventiva são armadilhas que fomentam facções e ganância por privatização carcerária

A entrada em vigor das alterações no Código de Processo Penal representa muito mais do que um ajuste procedimental na justiça criminal brasileira. Trata-se de uma virada política e legislativa que, sob a justificativa de combater a impunidade, institui mecanismos que inevitavelmente irão inflar o sistema carcerário.

Ao analisarmos a nova redação dos artigos 310 e 312, cruzada com os dados mais recentes do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e a literatura sobre gestão prisional, torna-se evidente que estamos caminhando para uma tempestade perfeita. Estamos prestes a agravar o déficit de vagas, fortalecer o recrutamento de facções criminosas e criar um passivo financeiro que servirá de pretexto para a privatização do sistema, uma solução que, como veremos, custa muito mais caro ao contribuinte e mercantiliza a privação de liberdade.

O automatismo da prisão: como é a nova letra da lei

A mudança central reside na rigidez imposta ao magistrado nas audiências de custódia. O novo parágrafo 5º do Artigo 310 estabelece um roteiro que recomenda a conversão da prisão em flagrante em preventiva, tendo critérios como “haver provas que indiquem a prática reiterada de infrações” ou o fato de o agente ter sido liberado em audiência prévia. Essas mudanças retiram a discricionariedade da análise caso a caso e impõem uma lógica de encarceramento serial.

Mais preocupante ainda é a redefinição de “periculosidade” no Artigo 312, § 3º. A lei agora vincula o risco à ordem pública ao modus operandi e, principalmente, ao “fundado receio de reiteração delitiva, inclusive à vista da existência de outros inquéritos”. Na prática, isso significa que a presunção de inocência é fragilizada: a mera existência de inquéritos em curso, sem condenação definitiva, torna-se fundamentação legal para manter o cidadão preso preventivamente.

A matemática do colapso: O déficit de vagas

Essa pressão legislativa por mais prisões colide frontalmente com a realidade física das nossas penitenciárias. Os dados do Relatório de Informações Penais (Relipen), relativos ao primeiro semestre de 2024, mostram que o Brasil possuía uma população carcerária de 663.906 pessoas para uma capacidade instalada de apenas 488.951 vagas.

O déficit oficial era de 174.436 vagas, o que equivale à população de uma cidade de médio porte composta inteiramente por pessoas amontoadas em celas superlotadas. O Estado de São Paulo lidera esse cenário dantesco com um déficit de quase 46 mil vagas, seguido por Minas Gerais e Pernambuco.

O ponto crítico para a análise é o número de presos provisórios: 183.806 pessoas estão presas sem terem sido condenadas. Isso representa quase 28% de toda a massa carcerária e tem sua maioria composta por homens. Com a nova legislação endurecendo os critérios para a liberdade provisória e ampliando as hipóteses de prisão preventiva, é estatisticamente certo que esse número irá disparar.

Ao mesmo tempo, não há, no horizonte de curto prazo, capacidade de investimento estatal para absorver esse contingente. A construção de presídios é lenta, impopular e cara e o resultado dessa macabra equação será a piora das condições de insalubridade, num sistema onde mais de 30 mil presos já sofrem com doenças transmissíveis como tuberculose e HIV, e a perda total do controle estatal dentro dos muros.

O sistema prisional como “Rh” do crime organizado

É aqui que a sociologia do crime encontra a tragédia administrativa. O sistema prisional brasileiro não é um vácuo de poder; ele é um território governado. As facções criminosas, como o PCC e o CV, nasceram e se estruturaram dentro dos presídios, expandindo-se posteriormente para as ruas.

Ao lançarmos milhares de novos presos provisórios nesse sistema, muitos deles detidos por crimes sem violência ou pequenos traficantes varejistas, estamos entregando-os diretamente nas mãos dessas organizações. O Estado prende, mas quem fornece o colchão, o kit de higiene e a proteção física é a facção.

Em troca dessa “segurança”, o preso contrai uma dívida de lealdade. O encarceramento em massa, turbinado pela nova lei, funciona como um mecanismo de recrutamento forçado. Estamos pegando jovens desorganizados e transformando-os em soldados fidelizados de organizações transnacionais. O aumento da massa carcerária, portanto, não enfraquece o crime organizado; ele garante a sua reprodução e expansão.

A privatização: lucro sobre corpos

Diante do colapso anunciado e da incapacidade financeira do Estado, surge a narrativa da privatização como panaceia. O discurso neoliberal sugere que a gestão privada traria a eficiência empresarial para o caos prisional, contudo, as evidências apontam para o contrário. A privatização transforma a execução penal em um mercado lucrativo, onde a commodity é o tempo de liberdade do ser humano.

Como alertam pesquisadores, a privatização cria um “complexo industrial prisional”. Nos Estados Unidos, o modelo gerou lobbies poderosos que atuam para manter penas altas e bloquear reformas descriminalizantes, pois o lucro depende da taxa de ocupação.

No Brasil, os movimentos recentes são alarmantes. O Decreto nº 11.964/2024 incluiu o sistema prisional como área prioritária para investimentos com isenção fiscal e apoio do BNDES. Experiências como a parceria público-privada (PPP) para o complexo prisional de Erechim (RS) revelam a falácia da economia de recursos. Enquanto o custo médio mensal de um preso no sistema público gira em torno de R$ 1.800 a R$ 2.500, o custo previsto na PPP de Erechim é de R$ 6.990 por preso.

Trata-se de uma transferência massiva de recursos públicos para a iniciativa privada (estimada em R$ 3 bilhões ao longo de 30 anos apenas nesse contrato), para empresas que muitas vezes carecem de expertise em ressocialização e acumulam denúncias de irregularidades em outros setores de serviços terceirizados.

A lógica contratual privada exige taxas mínimas de lotação, ou seja, o Estado se obriga contratualmente a prender para garantir o lucro da concessionária. A nova lei processual penal, ao facilitar a prisão, serve perfeitamente a esse propósito de mercado: garante o fluxo de “clientes” para as prisões privadas, mercantilizando a punição e tornando os corpos, majoritariamente negros e pobres, em ativos financeiros.

O “Efeito Bukele” e a ilusão autoritária

A atual conjuntura política brasileira parece seduzida pelo “modelo Bukele” de El Salvador: encarceramento em massa, suspensão de garantias e mega-prisões. A nova legislação flerta com esse populismo penal, buscando dar uma resposta rápida à sensação de insegurança.

No entanto, importar essa tática para o Brasil é um erro estratégico grosseiro. Diferente das gangues de rua salvadorenhas, as facções brasileiras possuem capilaridade internacional, controle sobre rotas de tráfico de armas e drogas, e um poder financeiro robusto.

Apostar no encarceramento massivo num país de dimensões continentais, com fronteiras porosas e um déficit de 174 mil vagas, é insustentável. Não temos capacidade de vigiar, muito menos de ressocializar esse contingente. Ao tentar sufocar o crime pela quantidade de prisões, sem inteligência e sem atacar a estrutura financeira das facções, o Brasil apenas incha o sistema até o ponto de ruptura.

O caminho para a segurança pública real passa pela descapitalização do crime organizado, pelo rastreamento de ativos e pela modernização da investigação policial, mais eficazes do que a simples prisão de varejistas.

A nova lei pode satisfazer o desejo imediato de punição de parte da sociedade, mas o preço será cobrado com juros altos: mais violência nas ruas, fortalecimento das facções dentro dos presídios e um rombo bilionário nos cofres públicos, possivelmente desviado para o lucro de empresas privadas de gestão prisional. Estamos construindo, lei a lei, tijolo a tijolo, a nossa própria distopia.

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