A recente onda de intoxicações por metanol, que se espalhou por mais de uma dezena de estados brasileiros, deixando um rastro de mortes e sequelas permanentes como a cegueira, é muito mais do que uma crise de saúde pública. É mais uma manifestação tóxica e mortal de uma doença crônica que corrói as estruturas econômicas e de segurança do país há décadas: a existência de um vasto, sofisticado e bilionário mercado ilegal de bebidas.
Este fenômeno não nasceu de ações isoladas de pequenos fraudadores, mas floresceu em um ambiente de falhas regulatórias e de um vácuo de fiscalização que permitiu a consolidação de uma verdadeira indústria paralela, cujos lucros superam os de gigantes do setor legal.
Enquanto as vítimas lutavam por suas vidas em leitos de UTI e as autoridades sanitárias corriam para distribuir antídotos, a discussão pública se viu, por vezes, desviada para um debate sobre a presença ou não de grandes facções criminosas no esquema.
Contudo, uma análise aprofundada, amparada por estudos robustos como o do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revela que a questão é mais complexa. A crise do metanol é, em sua essência, um estudo de caso sobre como decisões administrativas, tomadas anos atrás, podem abrir as portas para que operações criminosas estruturadas explorem as brechas do Estado, transformando um produto de consumo em uma droga sem controle de qualidade e que, eventualmente, pode ser letal.
O metanol que nos últimos dias matou consumidores e segue colocando vidas em risco e espalhando pânico não chegou às garrafas por acaso, mas como consequência de uma cadeia de negligências e oportunidades criminais.
Um eco do passado: A tragédia anunciada
Para compreender a dimensão da crise atual, é preciso olhar para o passado. O Brasil já viveu um pesadelo semelhante. Em 1999, no estado da Bahia, o consumo de cachaça clandestina adulterada com metanol intoxicou mais de 400 pessoas e causou 35 mortes em dez municípios. Naquela época, a investigação policial também concluiu se tratar de uma ação criminosa, com a detecção de concentrações letais da substância tóxica nas bebidas vendidas em bares locais.
A tragédia de 1999, mais de um quarto de século atrás, serve como prólogo sombrio para os eventos recentes. As semelhanças são um atestado da persistência das vulnerabilidades sistêmicas do país. Em ambos os surtos, a resposta estatal foi reativa, focada na contenção de danos, apreensão de produtos, interdição de estabelecimentos e prisão de suspeitos.
No entanto, a repetição do desastre evidencia que as causas profundas, como a produção clandestina e as falhas de fiscalização que permitem a distribuição capilar de produtos ilegais, nunca foram efetivamente sanadas. A crise atual não é, portanto, uma novidade, mas a redescoberta de um problema crônico, cuja recorrência era previsível.
A anatomia de um império criminal de R$ 57 bilhões
Qualquer narrativa que trate a falsificação de bebidas como um crime de menor importância ou de pequena escala é desmentida por um número avassalador. O estudo “Follow the products: rastreamento de produtos e enfrentamento ao crime organizado no Brasil”: publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, estima que o mercado ilegal de bebidas movimentou a cifra de R$ 56,9 bilhões no Brasil em 2023.
Para colocar essa quantia em perspectiva: neste mesmo ano, o faturamento do crime organizado com bebidas foi superior ao da Ambev, o maior fabricante de cervejas da América Latina, que auferiu R$ 49 bilhões.
Isso significa que a economia do crime neste setor não é marginal; ela opera em uma escala corporativa, com uma receita que rivaliza e até ultrapassa a de uma das maiores empresas do país. Entre os quatro mercados ilícitos analisados pelo FBSP: ouro, combustíveis, tabaco e bebidas, o de bebidas representa a segunda maior fonte de receita para o crime organizado, atrás apenas do comércio ilegal de combustíveis.
A modalidade mais comum neste mercado é a falsificação, principalmente através da reutilização de garrafas de marcas famosas para envasar produtos adulterados.
A logística para essa fraude é abastecida por um mercado de suprimentos paralelo que opera com surpreendente abertura. A Advocacia-Geral da União (AGU) chegou a notificar a Meta para que removesse grupos no Facebook e Instagram que vendiam ilegalmente lacres, tampas, rótulos e garrafas, incluindo falsos “selos da Receita Federal”.
Essa facilidade de acesso aos insumos demonstra a estruturação da cadeia produtiva do crime, que vai muito além da simples adulteração em um fundo de quintal.
Vácuo na fiscalização é a raiz do problema
A pergunta fundamental é: como esse mercado ilegal pôde crescer a ponto de se tornar um império bilionário? A resposta, segundo o relatório do FBSP, está diretamente ligada a uma decisão administrativa que criou um “apagão de dados” e um vácuo de controle: o desligamento, em 2016, do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe).
Implementado em 2008 pela Receita Federal e pela Casa da Moeda, o Sicobe era um sistema de rastreamento que monitorava a produção de bebidas em tempo real. Sua eficácia na redução da sonegação fiscal e do contrabando era notória. Seu fim, no entanto, abriu uma brecha que foi prontamente explorada por grupos criminosos. O estudo do FBSP é taxativo ao afirmar que as organizações criminosas “exploram falhas no controle e fiscalização do Estado para multiplicar suas fontes de receita”.
Os números confirmam essa correlação de forma dramática. O volume de bebidas produzidas ilegalmente no país saltou de 2 bilhões de litros em 2016, ano do fim do Sicobe, para 5,3 bilhões de litros em 2022, um aumento superior a 160%.
Essa fragilização do controle foi reconhecida até mesmo por autoridades que, em outros momentos, buscaram minimizar a gravidade do problema. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, admitiu que a mudança nas normativas da Receita Federal em 2016 “fragilizou o controle do setor”.
A expansão do comércio eletrônico e de marketplaces online adicionou uma nova e perigosa dimensão ao problema, servindo como um canal de distribuição direto entre os criminosos e os consumidores desavisados, que compram produtos falsificados acreditando estar fazendo um bom negócio.
A crise do metanol, portanto, não pode ser vista como um evento aleatório. Ela é a consequência direta e trágica de uma desregulamentação que, na prática, entregou uma fatia significativa do mercado de bebidas a operadores do crime.
Um crime organizado, mas não como se imagina
A divergência de posturas entre o governo federal, que abriu inquérito na Polícia Federal para apurar a “possível conexão com o crime organizado” , e o governo de São Paulo, que negou veementemente essa hipótese, afirmando se tratar de “pessoas que atuam de forma isolada” , acabou por desviar o foco da questão central. O debate público ficou refém de uma falsa dicotomia: ou o crime é obra do PCC, ou não é “crime organizado”.
Essa visão é redutora e ignora tanto a definição legal quanto a complexa realidade criminal brasileira. A Lei nº 12.850/2013, que define organização criminosa, não exige um “selo” ou uma “marca” de uma facção conhecida. Ela estabelece critérios estruturais: a associação de quatro ou mais pessoas, de forma ordenada e com divisão de tarefas, para cometer crimes graves. As operações desmanteladas durante a crise, como a que flagrou 20 pessoas em um galpão industrial com maquinário e clara divisão de funções, enquadram-se perfeitamente nesta definição legal.
Além disso, o crime organizado no Brasil é um ecossistema diversificado, com pelo menos 72 facções identificadas atuando no país. Esses grupos expandiram seu portfólio para muito além do tráfico de drogas, infiltrando-se em setores da economia formal e informal, como o comércio de combustíveis, mineração, mercado imobiliário e contrabando de cigarros.
A falsificação de bebidas é apenas mais um desses mercados altamente lucrativos. A questão relevante para a investigação não deveria ser “É o PCC?”, mas sim “Qual grupo, com estrutura de organização criminosa, está por trás desta operação industrial que causou envenenamento em massa?”.
Um caminho para estancar a sangria
A crise do metanol expôs as feridas abertas de um país que, ao flexibilizar seus mecanismos de controle, permitiu que uma indústria criminosa se tornasse tão grande quanto as maiores corporações legais. A tragédia das vítimas é o custo humano de uma falha sistêmica que combina negligência regulatória com a sofisticação de grupos criminosos que souberam explorar cada centímetro do vácuo deixado pelo Estado.
Enfrentar este problema exige mais do que ações reativas e discursos políticos. É essencial reconstruir as barreiras de fiscalização que foram derrubadas. A recriação de um sistema nacional de rastreabilidade de bebidas, nos moldes do antigo Sicobe, mas com tecnologias modernas, é uma medida urgente e inadiável.
Além disso, é crucial que a inteligência financeira e policial trate os mercados ilícitos de produtos de consumo com a mesma prioridade estratégica dedicada ao combate ao tráfico de drogas, pois são eles que capitalizam e fortalecem o crime organizado em suas múltiplas formas.
A sociedade brasileira não pode se dar ao luxo de esperar pela próxima tragédia para redescobrir um problema que já ceifou vidas no passado e que continua a operar à luz do dia, movimentando bilhões.
A resposta deve ser estrutural, focada na asfixia econômica dessas redes e no fortalecimento da fiscalização. Somente assim será possível garantir que o próximo brinde não termine em um leito de hospital.