A nova escalada de Donald Trump contra a Venezuela – e agora, desde o último dia 19 de outubro, também contra a Colômbia – pode ser entendida como um sinal de uma guinada mais profunda na estratégia de segurança internacional dos Estados Unidos.
Em 14 de outubro de 2025, Trump assumiu ter dado autorização para operações secretas da CIA no território venezuelano e o deslocamento de mais navios para o Caribe. Pouco depois repetiu o que já tinha feito com uma lancha venezuelana e anunciou ter atacado um barco colombiano nas águas do Caribe.
Em ambos os casos, o argumento oficial foi a necessidade de “interromper rotas do tráfico”. Mas o que está em curso é uma tentativa de reposicionar o poder norte-americano em seu entorno geopolítico e reafirmar o controle de uma região que, desde a Doutrina Monroe (1823), os Estados Unidos (EUA) consideram como seu quintal e, desde a II Guerra Mundial, como sua retaguarda estratégica.
Esse movimento decorre da percepção realista da situação conflitiva do mundo e da constatação de que os EUA já não poderiam sustentar com êxito as beligerâncias que se desenham no horizonte histórico imediato. Talvez influenciado pelo Final Report da Commission on the National Defense Strategy , no qual se reconhece a impotência para enfrentar o que seria um “Eixo do Mal” (China, Rússia, Irã e Coreia do Norte), Trump decide retirar suas forças distribuídas pelo mundo num recolhimento estratégico, deixar focos de instabilidade regionais como manobra distrativa e se fortalecer militarmente com mudanças radicais em três frentes consideradas obsoletas: o Complexo Industrial-Militar; a Diplomacia e as Forças Armadas.
Nessa estratégia, Trump decide reforçar, em primeiro lugar, seu quintal latino-americano, o círculo mais próximo de segurança dos Estados Unidos. Como? Diminuindo momentaneamente o esforço bélico no teatro de operações principal (Eurasia, Oriente Médio e Pacífico) para reforçar o palco secundário (América Latina e Atlântico Sul). Washington tenta assim consolidar sua base material — recursos, cadeias produtivas, rotas energéticas e presença militar regional.
No Oriente Médio, Washington se afastou de ocupações prolongadas após o fim da guerra do Afeganistão e reduziu a presença militar no Iraque e na Síria. Na Europa, o desgaste do apoio à Ucrânia mostrou os limites da capacidade de manter um confronto de longa duração com a Rússia. Na Ásia, o enfrentamento com a China deslocou-se do campo militar para o tecnológico-comercial. Em todos esses casos, o custo de permanência superou o ganho estratégico.
As ameaças à Venezuela e à Colômbia cumprem uma função simbólica e instrumental. Servem de demonstração de força e como um sinal político a todos os países do continente, ocupando uma posição central no tabuleiro continental.
Ao mesmo tempo, marca a retomada de uma doutrina de contenção à crescente aproximação dos países com a Rússia e especialmente com a República Popular da China, lembrando a preocupação estratégica análoga que tiveram com a Alemanha durante a Segunda Guerra. A América Latina volta a ser concebida como um espaço estratégico que deve permanecer sob vigilância direta e indireta (contando para isso com os militares latino-americanos).
Motivação estratégica
O discurso antidrogas é, portanto, um invólucro. O fentanil, substância que mais preocupa os EUA pela sua crescente letalidade, provém do México, não de Caracas ou dos carteis colombianos.
No caso da Venezuela, não há provas da existência de um cartel das drogas cujo chefe fosse o presidente Maduro, conforme acusa Trump. E ainda que fosse, seria uma questão judicial que não implica de forma alguma uma operação militar no Caribe e menos ainda no território venezuelano. Consideramos que se trata exclusivamente de uma prevenção estratégica: dissuadir a expansão de alianças latino-americanas alternativas que debilitem o flanco sul e reconquistar o controle sobre recursos críticos, como petróleo e terras raras.
Essa lógica já se manifesta em outras frentes. Washington impôs tarifas de 50% sobre produtos brasileiros. Em setembro, desqualificou a Colômbia como parceira “na luta contra as drogas” e intensificou sanções a Caracas, que levaram aos ataques também contra um barco colombiano.
Nenhuma dessas medidas trouxe o efeito esperado. Ao contrário, estimularam reações adversas: a Venezuela firmou acordos militares e energéticos com a Rússia; a Colômbia, sob Gustavo Petro, sinalizou revisão de sua cooperação militar; o Brasil manteve o julgamento dos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro, contrariando exigências de Trump.
Esses movimentos exemplificam a dificuldade que os EUA enfrentam para manter o controle político exclusivo sobre o continente, como foi entre as décadas de 1950 e 1980. Nesse período, os EUA invadiram países, impuseram governos alinhados, apoiaram golpes militares e orientaram as políticas de defesa da região. Hoje, essa hegemonia está combalida. A diplomacia de canhoneira perdeu eficácia e legitimidade.
A emergência dos novos polos de poder dissolve a influência gravitacional estadounidense. Novas cadeias produtivas, o acesso à tecnologia e os fluxos comerciais diversificados conferiram aos países latino-americanos maior liberdade de ação e novos espaços de decisão, como o BRICS.
Quem controla os meios, controla as decisões
Soberania, em política externa, é o poder de um país de manter as próprias decisões diante de pressões internacionais. É a capacidade de dizer “não” quando interesses externos contrariam os nacionais. A lógica da política externa se expressa por meio de duas gramáticas: a diplomacia e a força. O objeto central da Defesa é fortalecer a gramática diplomática na proteção da possibilidade de decidir autonomamente.
Em teoria, a política externa deveria articular as duas linguagens, diplomática e militar, em um funcionamento harmônico. Mas a autonomia de que gozam as forças armadas em relação ao poder civil na região impede essa harmonia e compromete o exercício pleno da política externa. A origem desse desencontro é uma vulnerabilidade estratégica: a maior parte das forças armadas da região foi criada por emulação de metrópoles coloniais: os militares latino-americanos são treinados, equipados e orientados segundo padrões externos. Essa dependência é o ponto de entrada da influência externa sobre o pensamento militar.
No plano interno, as forças armadas deixam de ser instrumento não deliberante do Estado e passam a agir como um poder autônomo, com capacidade de decisão própria — uma herança histórica da América Latina, onde os militares se veem como “guardiões da nação” e não como servidores do poder civil legitimamente deliberante. Sem controle político efetivo, a gramática militar se dissocia da lógica da política externa, e o país perde coerência estratégica.
No plano externo, a autonomia militar interna costuma estar acompanhada por dependência tecnológica e doutrinária de potências estrangeiras, especialmente dos EUA. Mesmo “autônomos” em relação ao próprio governo, continuam subordinados a outra lógica de poder — a do país que fornece suas armas (pagas pelos contribuintes nacionais) e molda suas doutrinas.
Sem comando e direção política efetiva sobre o instrumento militar, a soberania — tanto no plano nacional quanto no internacional — torna-se uma quimera. As operações recentes no Caribe evidenciam esse descompasso: para o governo brasileiro, são ações inaceitáveis; para setores das forças armadas, representam legítimas operações de “segurança hemisférica”.
Reservas energéticas e minerais
A nova ofensiva de Trump também reativa o tema do Atlântico Sul, região onde se cruzam os interesses dos EUA, Europa e China. O oceano é rota essencial do comércio asiático e concentra reservas energéticas e minerais estratégicas. Nesse cenário, os EUA reforçam a atuação da Quarta Frota, força naval sediada na Flórida, subordinada ao Comando Sul.
Criada originalmente em 1943, dissolvida após a Segunda Guerra e reativada em 2008, essa frota tem sob sua responsabilidade o Caribe, a América Central, a América do Sul e o Atlântico adjacente. Sua função é manter presença militar contínua, coordenar exercícios conjuntos e garantir o controle das principais rotas marítimas do hemisfério. As embarcações não operam dentro da Venezuela, mas nas águas internacionais próximas, onde as manobras de “combate ao narcotráfico” servem como instrumento de pressão política.
Nesse espaço, a França (membro nuclearizado da OTAN) mantém tropas permanentes na Guiana Francesa, o que lhe assegura presença efetiva no Atlântico Sul. O Reino Unido, outro membro nuclear da OTAN, sustenta bases e guarnições no “colar de ilhas” que fecha o oceano ao sul, configurando um arco de vigilância britânico sobre as rotas entre o Atlântico e o Índico. Somadas, essas presenças formam um cinturão estratégico que limita o avanço de novos atores no hemisfério. As operações navais promovidas por Trump em torno da Venezuela inserem-se nessa lógica de contenção e reafirmação do domínio sobre o Atlântico Sul.
A situação internacional é de uma crise de hegemonia global. Toda crise também representa uma oportunidade. Neste caso, abre-se uma fenda que permitiria aos países defenderem um não alinhamento pragmático — uma neutralidade ativa, não confrontativa, marcada por equidistância polar em busca da realização dos interesses nacionais. Mas, a neutralidade ativa é possível para países fortes e decididos.
Frente a isso, a América Latina tem duas opções: aceitar a tutela ou construir uma arquitetura própria de cooperação em defesa. A segunda hipótese exige coordenação política e confiança mútua. Países como México, Colômbia, Chile e Brasil poderiam compor um eixo gravitacional de atração para outros e formular posições comuns. A multipolaridade só fará sentido se for acompanhada por um multilateralismo real, com voz ativa do Sul. O que está em disputa, quando o Caribe volta a ser cenário de navios de guerra e operações secretas, é a legitimidade de quem decide sobre o destino dos países do continente.