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Mujica: esperança política e construção coletiva

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Mujica: esperança política e construção coletiva

Morreu no dia 13 de maio de 2025, aos 89 anos, José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai e uma das figuras mais marcantes da política latino-americana do século XXI. Sua morte encerra uma trajetória singular, marcada por uma transformação profunda: de guerrilheiro nos anos 60 e 70 a chefe de Estado entre 2010 e 2015. Mas talvez o que mais explique o fascínio por Mujica, de tantas pessoas ao redor do mundo, seja sua capacidade de simbolizar, até o fim da vida, uma política feita com simplicidade, compromisso com a democracia e defesa de direitos sociais.

Sou cientista política e professora no Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e estudo a política uruguaia desde o meu doutorado, com foco no papel dos partidos políticos de esquerda latino-americanos na consolidação democrática. Nesse processo, acredito que Mujica tenha se destacado como um verdadeiro fenômeno político, cujo carisma único projetou o Uruguai no cenário político internacional.

Talvez esse fator não seja tão evidente para nós, brasileiros, acostumados com a centralidade que nosso país ocupa em termos de território, população e economia. No entanto, o Uruguai, com pouco mais de 3 milhões de habitantes e uma expressiva sociedade rural, não costumava estar no centro das atenções globais. Mas, sob a liderança de Mujica, o país atraiu os olhares do mundo pelas políticas inovadoras e por um discurso político profundamente enraizado em valores democráticos e humanistas.

Mujica foi uma dessas figuras raras que parecem desafiar o cinismo e o desencanto do tempo presente. Coerente entre discurso e prática, defendia a política como espaço de construção coletiva, de compromisso com a justiça social e de aposta no futuro. Ele próprio se definia como um socialista, comprometido com a transformação social por meio da ação política coletiva. Sua figura projetou, a partir de um pequeno país, uma forma de fazer política que resgatava o sentido público e compartilhado da democracia.

Durante seu governo, o Uruguai se tornou o primeiro país da América Latina a legalizar o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a produção e venda regulada de maconha. Essas medidas foram conquistadas por negociações com o Parlamento, movimentos sociais e com a sociedade civil, mas também ancoradas pela coragem e liderança do presidente.

Poder de articulação

No Brasil, sua perda também será sentida. Mujica não era apenas um aliado político, mas um conselheiro próximo e amigo pessoal do presidente Lula. Ao longo dos anos, ele desempenhou um papel importante como articulador entre diferentes gerações e correntes da esquerda na América Latina. Tinha uma capacidade rara de dialogar com líderes históricos e, ao mesmo tempo, inspirar figuras mais jovens, como Gabriel Boric, no Chile.

Seu papel foi decisivo na consolidação da Frente Ampla (FA) do Uruguai como uma das mais duradouras organizações de esquerda da América Latina. Criada em 1971, a FA tem forte estrutura organizativa, marcada pela unidade na diversidade, e abriga desde o Partido Comunista até setores progressistas moderados, funcionando com base em negociações permanentes entre suas diversas correntes. Essa estrutura, voltada para a democracia participativa e que conta com o envolvimento ativo das bases, é um dos fatores para seu êxito.

Mujica liderava uma das principais tendências do FA, o Movimento de Participação Popular (MPP), que emergiu do antigo grupo guerrilheiro MLN-Tupamaros. Essa trajetória foi um símbolo da aposta democrática do Uruguai após a ditadura militar (1973–1985), um legado simbólico e político muito importante.

Esperança, simplicidade e democracia

A vida de Mujica foi, em si, uma poderosa mensagem de esperança e resiliência. Ele começou a se organizar na política tradicional, depois se converteu em guerrilheiro. Após 12 anos em um calabouço solitário durante a ditadura, saiu da prisão e atuou fortemente pelo fortalecimento das instituições democráticas. Foi um político muito votado, tanto como deputado, senador e presidente.

Mas seu legado vai ainda mais além. Mujica também tornou-se um ícone internacional por seu estilo de vida austero. Vivia em uma chácara modesta, dirigia um Fusca e doava grande parte de seu salário como presidente. Essa imagem de simplicidade se tornou símbolo de autenticidade, mostrando que a política pode ser feita por pessoas comuns. Uma mensagem importante, que gerou enorme empatia, mesmo em tempos de crise econômica, de aprofundamento do neoliberalismo e descrença na política.

Seu discurso apontava caminhos claros: redistribuição de renda, fortalecimento do Estado como promotor de direitos, valorização da democracia participativa. Tinha também um apelo cultural conectado à tradição uruguaia – um país laico, que preza pela simplicidade do campo, das longas conversas e debates.

Um futuro sem Mujica

Nos últimos anos, mesmo longe da presidência, Mujica manteve uma atuação ativa e muito influente. Foi senador, apoiou candidaturas e serviu como referência política em um contexto de desgaste da esquerda e ascensão da extrema-direita na América Latina – uma tendência que, até o momento, segue com pouca expressão no Uruguai, onde predominam partidos tradicionais e a competição eleitoral se estrutura de forma programática.

Sua atuação foi essencial para garantir a vitória do FA nas eleições presidenciais, em novembro de 2024, com a eleição de seu herdeiro político Yamandú Orsi, marcando seu retorno ao governo nacional. Mais recentemente, no último domingo, a FA também manteve o controle de Montevidéu, vencendo sua oitava eleição consecutiva na capital. Ao ver seu legado político continuar, provavelmente, Mujica pôde descansar em paz. Missão cumprida.

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