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Mujica: um articulador de esperanças no Sul Global

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Mujica: um articulador de esperanças no Sul Global

A morte de José “Pepe” Mujica, aos 89 anos, marca o fim de uma das trajetórias políticas mais singulares e simbólicas do século XXI. Ex-guerrilheiro, preso por mais de uma década durante a ditadura uruguaia, Mujica emergiu como presidente de seu país (2010–2015) e tornou-se uma figura de projeção mundial ao encarnar um tipo raro de liderança: austera, coerente e voltada à justiça social. Mais do que um ícone do Uruguai, Mujica foi um articulador de esperanças no Sul Global — e sua ausência ressoará com força em tempos de crise democrática, avanço da ultradireita e descrença na política.

No Brasil, Mujica era mais do que um aliado. Foi um conselheiro e amigo próximo do presidente Lula, com quem compartilhava uma visão de mundo ancorada na igualdade, no papel ativo do Estado e no respeito à democracia.

Ao longo dos anos, exerceu informalmente um papel de mediação entre lideranças da esquerda brasileira e latino-americana, contribuindo para manter diálogos abertos mesmo em momentos de polarização ou desencanto. Sua capacidade de dialogar com diferentes gerações — de líderes históricos a jovens como Gabriel Boric — conferiu-lhe uma dimensão transnacional que escapa à maioria dos chefes de Estado sul-americanos.

Na América Latina, seu papel foi igualmente singular. Liderou o Uruguai em um ciclo progressista, mas o fez de modo distinto. Seu governo aprovou leis de vanguarda, como a legalização do aborto, do casamento entre pessoas do mesmo sexo e do uso regulado da maconha — sempre por meio de articulações parlamentares e sociais, sem recorrer ao populismo ou à ruptura institucional.

Sua defesa da democracia como construção coletiva, aliada à firmeza ética, permitiu que o pequeno país se projetasse no cenário internacional como modelo alternativo de governança progressista.

Mujica também teve papel relevante na consolidação da Frente Ampla, coalizão de esquerda fundada em 1971 e hoje referência na região pela longevidade e diversidade interna. Ele liderava o Movimento de Participação Popular (MPP), herdeiro do grupo Tupamaro, e ajudou a transformar a experiência da luta armada em um projeto democrático e institucional. Isso foi decisivo para sustentar uma esquerda uruguaia capaz de dialogar com o mercado sem abdicar de seus princípios — uma combinação rara e cada vez mais valiosa no atual cenário latino-americano, onde os progressismos ora se diluem, ora se radicalizam sem consistência.

No plano global, Mujica foi uma voz que desafiou o cinismo de nosso tempo. Sua crítica ao consumismo, sua defesa radical da liberdade como tempo de vida e seu estilo de vida simples — morando numa chácara, dirigindo um Fusca, doando parte do salário — tornaram-se símbolos de autenticidade num mundo saturado de lideranças performáticas e tecnocráticas. Em entrevistas recentes, insistia na urgência de uma cultura da sobriedade e da responsabilidade ecológica, afirmando que se todos quisessem viver como os europeus, precisaríamos de três planetas.

Essa mensagem, embora muitas vezes vista como utópica, representa um alerta geopolítico de longo alcance. Num momento em que a ascensão da ultradireita desafia as instituições democráticas — inclusive no Brasil e no Cone Sul —, Mujica oferecia uma alternativa: uma esquerda ética, popular, viável e baseada na pedagogia política e no compromisso com o comum.

Sua ausência deixará um vazio simbólico, mas também um legado estratégico. Em tempos de desorientação, Mujica nos lembra que a política pode — e deve — ser feita com decência, coragem e horizonte. O Brasil, a América Latina e o mundo perdem uma referência. Mas ganham, em sua memória, uma bússola. Mujica foi muito mais que um simples presidente: foi um ensaio vivo sobre o que ainda pode ser a boa política.

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