Maria (nome fictício) chegou ao Brasil sozinha com sua filha de nove anos, depois de uma longa travessia de três dias por las trochas, como são chamados os caminhos improvisados, informais ou não oficiais usados pelos imigrantes venezuelanos que cruzam a fronteira entre os dois países, no norte de Roraima. Ela recorreu a essa alternativa perigosa por causa da falta de gasolina e do fechamento da fronteira regular. Fugiu da precariedade econômica de seu país, e sonhava com estudos para filha, segurança, dignidade e a chance de reconstruir sua vida no Brasil. Mas, ao chegar em Boa Vista, teve que enfrentar inúmeros desafios. Que incluíam o idioma diferente, a falta de reconhecimento do seu diploma, as dificuldades para conseguir um emprego e a cultura machista da região. Conseguiu um trabalho como diarista, na informalidade, sem proteção social. E aconteceu o pior: foi violentada pelo homem que a contratou, ficou grávida e gerou mais uma filha, fruto da violência invisível e impune que sofreu.
Fluxo migratório cada vez maior
A história de Maria, embora única, se repete com muitas outras mulheres venezuelanas que chegam ao Brasil pela fronteira com Roraima. Desde o início da crise migratória, por volta de 2015 e 2016, o país recebeu mais de 680 mil venezuelanos, segundo dados da Plataforma Response for Venezuelans (R4V), com uma média que já chegou a mais de 500 pessoas cruzando a fronteira por dia, em 2025. O fluxo cada vez maior é gerido pela chamada Operação Acolhida, um esforço interinstitucional do governo federal, com apoio da ONU e de organizações da sociedade civil, que organiza o acolhimento emergencial e promove o chamado processo de interiorização, que é a realocação voluntária de refugiados e migrantes em outras cidades brasileiras, com mais capacidade de absorção de novos moradores do que Boa Vista.
Ainda assim, apesar da existência de um arcabouço legal protetivo e de políticas públicas que garantem o acesso à saúde, educação e trabalho formal, a realidade no terreno é mais complexa. Muitos dos abrigos de acolhimento em Roraima operam em condições de superlotação, faltam serviços especializados, especialmente para mulheres, e as estruturas institucionais ainda reproduzem desigualdades de gênero.
A interiorização, por sua vez, pode representar uma oportunidade de recomeço, mas também uma nova ruptura: mulheres são deslocadas sem redes de apoio, muitas vezes para regiões onde enfrentam racismo, xenofobia e precariedade no acesso a moradia, emprego e serviços públicos como assistência social.
Acolhida e riscos para mulheres em deslocamento forçado
Foi para entender essas dinâmicas que nós, do Programa de Doutorado em Ciências Sociais e do Comportamento da Universidade La Coruña, na Espanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, conduzimos uma pesquisa sobre os riscos e as violências vividas por mulheres venezuelanas refugiadas, solicitantes de asilo e migrantes no Brasil. Buscamos compreender não apenas as trajetórias individuais, mas os sistemas que mantêm essas mulheres em situação de vulnerabilidade, mesmo após cruzarem a fronteira.
A metodologia da pesquisa combinou técnicas qualitativas e quantitativas. Foram realizados grupos focais com mulheres venezuelanas em Roraima e em cidades de interiorização, como São Paulo e Rio de Janeiro. Fizemos entrevistas em profundidade com sobreviventes de violência de gênero e com informantes-chave, como profissionais da ONU, organizações de mulheres, casas de acolhida e assistentes sociais. Também foram analisados dados secundários de bases nacionais e internacionais, como o IBGE, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a plataforma R4V.
Padrão contínuo de violência
Os resultados revelam um padrão contínuo de agressões que começam ainda na Venezuela, com a intensificação da violência de gênero, da escassez de alimentos e da ausência de resposta estatal. Prolonga-se nas rotas de deslocamento, comumente marcadas por abusos e riscos de tráfico de pessoas, sendo os principais agressores pessoas desconhecidas (34%), grupos criminosos ou gangues (27%), parceiro ou ex-parceiro (12%), grupos armados ilegais (10%) e polícia ou militares (4%).E tudo isso se renova quando chegam no Brasil.
Para as mulheres que vivem na fronteira, uma em cada cinco já sofreu violência sexual ao menos uma vez em suas vidas, muitas de seus próprios parceiros. Além disso, acreditam estar principalmente sujeitas à violência sexual (30%), violência física (26%), socioeconômica (16%) e tráfico (12%) no Brasil. Em outras palavras, o risco não termina ao atravessar a fronteira, apenas muda de forma e endereço.
Identificamos que a Operação Acolhida e os seus abrigos, embora ofereçam proteção emergencial, falham em não considerar as necessidades específicas das mulheres. A lógica de resposta humanitária permanece centrada em uma abordagem neutra, que, por vezes, ignora fatores como gênero, idade e deficiência. A convivência forçada com homens desconhecidos, a ausência de espaços seguros e a sobrecarga com o cuidado de filhos são elementos que, longe de representar acolhimento, perpetuam o ciclo de violências. Das mulheres venezuelanas que vivem em Roraima, 43% se sentem inseguras em espaços públicos, 25% nos abrigos da Operação Acolhida, 17% em suas casas e 8% em seu trabalho.
Além disso, a pesquisa destaca a importância de adotar uma abordagem interseccional. A interseccionalidade emerge como um conceito essencial para compreender as diferentes formas de violência sofridas no contexto do deslocamento forçado. Este conceito destaca a interdependência entre diferentes eixos de opressão, como gênero, raça, etnia, orientação sexual e identidade de gênero.
Situação ainda mais dura para negras e indígenas
A partir dessa abordagem, é possível entender que as experiências de violência e vulnerabilidade não são homogêneas, mas variam conforme as múltiplas dimensões de identidade de cada mulher.
Mulheres negras e indígenas relataram vivências ainda mais duras, marcadas por discriminação racial e invisibilização. Já o estigma em torno do mito da “mulher venezuelana hipersexualizada” foi recorrente nos relatos, revelando como estereótipos de gênero e nacionalidade se entrelaçam para justificar práticas de assédio, exploração sexual e exclusão social. Por exemplo, muitas mulheres entrevistadas relataram ter deixado de buscar serviços de saúde por medo de serem tratadas com preconceito ou de não conseguirem se comunicar.
A interiorização, política central da Operação Acolhida, também foi objeto de análise. Embora represente, em teoria, uma estratégia de descongestionamento da fronteira e de melhor integração local, seus efeitos são ambíguos. Enquanto algumas mulheres encontraram trabalho, moradia e mais estabilidade em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, outras relataram que a ausência de redes de apoio e o desconhecimento sobre os serviços disponíveis as tornaram ainda mais vulneráveis ao chegarem em grandes centros urbanos. A barreira do idioma, por exemplo, foi apontada como um dos principais obstáculos ao acesso a direitos e à construção de autonomia.
Medo que só muda de formato
As experiências vividas pelas mulheres venezuelanas tanto na fronteira como nas cidades de interiorização revelam uma grande diferença nos tipos de acolhimento e nas dificuldades enfrentadas. Embora a fronteira conte com uma estrutura emergencial mais consolidada, as mulheres ainda enfrentam grandes desafios. A interiorização, embora seja uma estratégia de descongestionamento da fronteira, necessita ser acompanhada de políticas públicas mais eficazes para garantir a proteção contínua das mulheres.
Ao escutar os relatos, ficou claro que a violência de gênero no deslocamento forçado não é um desvio de rota, ela é parte do caminho. E, para muitas, o “destino seguro” ainda está por vir. Chegar no Brasil não significa ter mais proteção, o medo só muda de formato.
Frente a esse cenário, é urgente pensar em políticas migratórias com recortes como de gênero, raça, etnia, idade, orientação sexual e identidade de gênero, que reconheçam as especificidades e diversidades. É preciso que o acolhimento deixe de ser apenas logístico e se torne verdadeiramente protetivo, inclusivo e transformador para quem procura no Brasil uma vida melhor.