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Muralha Digital de Curitiba é um símbolo de como cidades inteligentes viraram cidades vigiadas

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Muralha Digital de Curitiba é um símbolo de como cidades inteligentes viraram cidades vigiadas

Em 2021, o então prefeito de Curitiba Rafael Greca inaugurou um programa de videomonitoramento ‘inteligente’ chamado Muralha Digital. Com este novo sistema, o prefeito prometeu transformar a capital paranaense em uma cidade “completamente controlada” por câmeras e inteligência artificial.

A Muralha Digital representa mais do que apenas um projeto de segurança pública. Ela é o símbolo de como projetos tecnossolucionistas de “cidades inteligentes” estão se transformando cada vez mais em “cidades vigiadas”. Este modelo combina a crença na eficiência tecnológica com o medo da violência urbana para dar legitimidade à vigilância em massa.

O que é a Muralha Digital?

O nome “Muralha Digital” não foi escolhido ao acaso. Ele remete às muralhas medievais europeias. Essa metáfora militar revela muito sobre como a tecnologia de vigilância é apresentada à população: a promessa de proteção contra ameaças externas. A Muralha Digital atualiza também um imaginário pautado no medo do outro, historicamente mobilizado como justificativa para a proliferação dos condomínios fechados. Agora este medo é projetado em escala urbana, com as cidades sendo tratadas como fortalezas a serem defendidas de inimigos difusos.

O projeto em si consiste em cerca de 2000 câmeras, distribuídas pela cidade, incluindo tecnologias de vigilância algorítmica como reconhecimento facial e leitores automáticos de placas veiculares, assim como câmeras corporais, em viaturas e botões de pânico. A ideia é monitorar todas as entradas e saídas da cidade, bem como pontos estratégicos como rodoviárias, escolas e cemitérios.

Todas essas câmeras se conectam a uma central de controle localizada no Instituto das Cidades Inteligentes (ICI). Ali, agentes da Guarda Municipal monitoram a cidade através de um “videowall” (um mural de telas). Eles podem usar sistemas automatizados para analisar as imagens em tempo real, por exemplo para buscar objetos suspeitos ou padrões comportamentais.

Os resultados da nossa recém-publicada pesquisa, que envolveu visitas à central de controle, entrevistas com funcionários e análise de documentos estão detalhados na revista Globalizations.

Construindo a Muralha Digital

A Muralha Digital dá continuidade à busca de Curitiba para se posicionar como uma cidade modelo: “a cidade mais inteligente do mundo”. Nos anos 70 e 80, Curitiba se promovia como a cidade do planejamento urbano e do BRT. Nos anos 1990, tornou-se a cidade verde e sustentável. Agora, promete demonstrar como tecnologias de vigilância algorítmica podem tornar cidades mais inteligentes e seguras.

Durante eventos como o Smart City Expo, Curitiba apresenta a Muralha Digital como um caso de sucesso, impulsionando sua adoção em outras cidades do Brasil e da América Latina.

No entanto, nossa pesquisa revelou várias questões problemáticas na criação da Muralha Digital. O projeto concentra poder em uma única organização privada, o Instituto das Cidades Inteligentes (ICI), que opera como uma organização social sem fins lucrativos. O Instituto centraliza todos os serviços digitais da cidade há mais de 20 anos. Sem necessidade de licitação, o ICI é contratado diretamente pela Prefeitura e por sua vez contrata outras empresas — um processo chamado de “quarteirização”. Com isto, há menos responsabilidade e controle público sobre esses projetos de digitalização.

A falta de transparência também diz respeito a como os sistemas de videomonitoramento coletam, processam e compartilham dados. A prefeitura não disponibiliza informações detalhadas sobre como a Muralha Digital funciona. Essa opacidade é justificada sob a alegação de que tais funções são responsabilidade do terceiro contratado, o Instituto das Cidades Inteligentes.

Embora a Muralha Digital tenha envolvido enormes investimentos públicos, não houve consultas públicas ou debates amplos sobre o projeto. Também não houve uma avaliação dos impactos que a implementação do sistema poderia causar, ao contrário do que outras cidades pelo mundo tem feito.

Quando um projeto de lei da vereadora Carol Dartora tentou proibir o reconhecimento facial em espaços públicos, ele foi engavetado sem mudanças no uso do sistema.

Os problemas de uma cidade vigiada

A vigilância algorítmica é apresentada como solução neutra e eficiente, justificando a vigilância em massa. No entanto, nossa pesquisa analisa que apesar da promessa high-tech da Muralha Digital, não há uma integração desta digitalização com políticas públicas na área de segurança. O projeto funciona mais como um palco para exibir as capacidades técnicas das tecnologias, com pouca consideração de como elas de fato são utilizadas. O espetáculo político da vigilância deixa de lado, portanto, as limitações técnicas e práticas dessas tecnologias.

Embora seu uso seja mais limitado do que prometido, a Muralha Digital também ignora os enormes riscos de sistemas de vigilância algorítmica como discriminação, ampliação de desigualdades, e ameaças à privacidade e aos direitos humanos. Por exemplo, sistemas de reconhecimento facial apresentam taxas mais altas de erro para pessoas negras e mulheres, além de levarem pessoas inocentes a situações constrangedoras. Em 2019, a Rede de Observatórios da Segurança apontou que 90,5% dos presos por reconhecimento facial no Brasil eram negros.

Em Curitiba, não há dados disponíveis sobre esses impactos, mas há preocupação de como eles podem aprofundar a violência contra grupos marginalizados. Por exemplo, o Observatório de Direitos Humanos da População em Situação de Rua indica que 48,15% da violência sofrida por essa população é perpetrada pela Guarda Municipal da cidade. Este número pode aumentar com a vigilância intensificada.

Um outro ponto é que a Muralha Digital usa quase exclusivamente sistemas da gigante chinesa Hikvision. A empresa é controlada pelo governo da China e tem sido alvo de sanções pelo mundo. Essa dependência de empresas estrangeiras também levanta dúvidas sobre como o sistema pode deixar cidadãos vulneráveis a outras formas de controle.

Esse cenário pode se agravar com a recente ampliação anunciada pelo poder público por meio do programa “Conecta Muralha”. Esta iniciativa promete integrar ao sistema da Muralha Digital cerca de 6 mil câmeras públicas e privadas, como empresas, escolas e condomínios residenciais. Trata-se de um salto preocupante rumo a mais vigilância, sem debate democrático ou salvaguardas efetivas de direitos.

Lições para outras cidades

O caso de Curitiba serve como alerta para outras cidades brasileiras e latino-americanas. Por trás da promessa da cidade inteligente se esconde uma cidade cada vez mais vigiada.

A promessa da eficiência tecnológica na segurança urbana não deve obscurecer questões fundamentais sobre privacidade, justiça e direitos humanos. Três pontos merecem atenção: a necessidade de debate público amplo antes da implementação de sistemas de vigilância; a importância de avaliações de impacto que considerem especialmente populações vulneráveis; e a urgência de regulamentação que garanta transparência de dados e prestação de contas.

Afinal, uma cidade verdadeiramente inteligente é aquela que usa a tecnologia para ampliar direitos e reduzir desigualdades, e não para criar novas formas de controle social.

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