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Na aliança entre conhecimento acadêmico e saberes indígenas, novos caminhos para os estudos do solo

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Na aliança entre conhecimento acadêmico e saberes indígenas, novos caminhos para os estudos do solo

Nos últimos 15 anos, houve um aumento expressivo de indígenas nas instituições de nível superior no Brasil. De acordo com os dados do último censo do IBGE e do INEP, as matrículas de indígenas subiram 374% de 2011 a 2021, passando de 9.764 para 46.252. Como consequência, hoje estamos testemunhando uma transformação na ciência nacional, principalmente nas áreas de ecologia, que passam pela necessidade urgente do reconhecimento dos saberes indígenas – em pé de igualdade com os saberes acadêmicos. Como membro do povo Potiguara, do litoral norte da Paraíba, e cientista de solos, inevitavelmente estou no epicentro dessa movimentação.

O meu povo Potiguara é uma das poucas comunidades indígenas litorâneas que permaneceram em seu território após a invasão europeia. Nosso território no estado da Paraíba é reconhecido e demarcado, e recentemente conquistamos a homologação da última área pendente, um feito que levou anos de luta para se concretizar. Além disso, nossa comunidade possui um conhecimento profundo sobre sua terra, fruto de gerações de convivência e manejo do ambiente.

Já o meu campo de pesquisa acadêmico é o da pedologia, que faz o mapeamento das características e propriedades dos diferentes tipos de solo das regiões. Existe uma demanda grande para esse tipo de pesquisa no Brasil, pois muitos mapas oficiais de solos são deficientes, embasados em levantamentos antigos e sem o detalhamento necessário para os planejamentos de políticas públicas agrícolas, ambientais e urbano do país. Eu me dedico especialmente a uma área que, dentre outras coisas, permite preencher essa lacuna: Uma vertente da ciência do solo denominada de etnopedologia, que incorpora o conhecimento indígena e popular.

Minha trajetória acadêmica começou em 2010, quando ingressei no curso de Agroecologia no Instituto Federal da Paraíba, em Picuí. Na época, escolhi o curso sem saber exatamente do que se tratava. Mas, muito rapidamente percebi que esse era mesmo o caminho que eu queria seguir, pois os temas abordados no curso dialogavam diretamente com minha realidade e a do meu povo.

Meu trabalho de conclusão de curso foi minha primeira incursão na ciência indígena sobre o solo, tendo como ferramenta teórica a etnopedologia. Nele, pesquisei o conhecimento Potiguara sobre o solo da minha comunidade, aldeia São Miguel. Esse trabalho foi muito significativo para mim, pois, ao mesmo tempo em que desenvolvi uma pesquisa acadêmica, pude estreitar os vínculos com minha comunidade. Inclusive, a pessoa que liderou meu acesso ao conhecimento Potiguara sobre o solo foi o meu próprio avô.

Análise do solo nas terras Potiguara. Foto do acervo particular do autor.

Até então, os mapas oficiais sobre nossas terras, baseados em dados da década de 1970, indicavam apenas um tipo de solo. No entanto, identificamos quatro tipos distintos – um conhecimento que já era amplamente aplicado pela comunidade no manejo agrícola. O saber tradicional, agora documentado, foi incorporado à academia, que finalmente reconheceu o que os indígenas já praticavam há gerações.

Esse registro é importante para combater o apagamento histórico do conhecimento indígena, frequentemente invisibilizado e apropriado ao longo dos séculos no Brasil. Além de reforçar que o povo Potiguara tem um conhecimento profundo sobre o seu território, esse documento também pode ser usado como instrumento de luta pelos nossos direitos. Pois ainda vivemos sob constante ameaça, tanto das usinas de cana-de-açúcar que nos rodeiam, quanto de empreendimentos turísticos.

Desafios na pós-graduação e o retorno ao território

Após concluir a graduação, meu desejo era aprofundar essa pesquisa. Porém, me deparei com uma frustrante barreira: não havia professores interessados ou preparados para orientar estudos de pós-graduação nessa linha. Percebi que a comunidade acadêmica em solos, no geral, segue modelos muito engessados, sem abrir muito espaço para abordagens inovadoras. A experiência foi inquietante, mas compreendi que obter o título acadêmico era um passo necessário para, no futuro, poder conduzir minhas próprias pesquisas.

Apesar dos desafios, encontrei orientadores dispostos a dialogar. Propus, no mestrado, um estudo alinhado ao meu território, sobre a relação entre diferentes tipos de solo e a ocorrência da mangabeira, uma frutífera nativa e de grande importância para o povo Potiguara. Depois, no doutorado, pesquisei sobre a recuperação de solo degradado com água de reuso tratada. Concluí o doutorado no meio da pandemia, em 2021, com uma bagagem enriquecedora, mas ciente da necessidade de continuar lutando por espaço para o desenvolvimento de pesquisas que valorizassem o conhecimento indígena.

Em 2022, comecei a atuar na Associação Paraibana dos Produtores de Mel da Baía da Traição (Paraíba-Mel), captando recursos e executando projetos ambientais e agrícolas. Foi nesse contexto que consegui aprovar um projeto no edital da FUNAI, dentro da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). Ele me permitiu retomar e expandir o trabalho iniciado na graduação. Com a parceria da Embrapa, fizemos o mapeamento técnico e o levantamento do saber tradicional sobre os solos da região em 25 aldeias.

Pós-doutorado Serrapilheira + FAPERJ

Para dar continuidade a esse trabalho, me inscrevi no programa de pós-doutorado voltado para pesquisadores negros e indígenas oferecido pelo Instituto Serrapilheira, em parceria com a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Essa nova etapa, iniciada em 2024, visa sistematizar os dados coletados e realizar novas expedições de campo. Além do território Potiguara, o novo projeto se estenderá à Serra da Bocaina, no sul do Rio de Janeiro, junto ao Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina, uma parceria entre a Fiocruz e o Fórum de Comunidades Tradicionais. Então, pela primeira vez, irei conduzir esse tipo de estudo em uma comunidade da qual não sou membro, o que representa um novo desafio.

O conhecimento Guarani sobre o solo possui especificidades distintas do saber Potiguara, o que exige uma abordagem cuidadosa, respeitosa e flexível. Embora desafiadora, acredito que ela enriqueça a ciência. Ao mesmo tempo, nos coloca em constante questionamento, já que o olhar rigoroso da academia tende a desafiar a validade de novas perspectivas. Por isso, preciso demonstrar continuamente a relevância do meu trabalho – e encaro esse desafio como parte inerente desse processo.

Construindo uma nova ciência do solo indígena

Portanto, tenho me dedicado também a consolidar metodologias para estudos que integrem saberes indígenas e acadêmicos. Essa é uma frente crucial para garantir que o conhecimento dos povos originários seja reconhecido e valorizado na ciência brasileira.

Nesse sentido, a minha seleção de pós-doutorado representou um marco importante. Apesar de a chamada ter sido voltada para a diversidade, eu fui o único pesquisador indígena aprovado. Em resposta a essa realidade, o Serrapilheira criou uma rede de pesquisadores ecologistas e indígenas para fomentar a produção científica dentro das nossas perspectivas. Esse espaço de troca tem sido essencial para o amadurecimento das nossas pesquisas e para a construção de um novo campo teórico.

Um dos nossos questionamentos diz respeito ao uso do termo “etno”. Afinal, a etnologia surgiu dentro da antropologia ocidental para estudar sociedades consideradas primitivas. E, embora tenha evoluído ao longo dos anos, ainda tem limitações. Na área ambiental, esse conceito se fragmentou em subdisciplinas como etnoecologia, etnopedologia, etnobotânica etc. – uma divisão que não reflete nossa forma de construir conhecimentos. Além disso, cada etnia possui sua própria cosmologia e visão de mundo, razão pela qual faz mais sentido nos referirmos a esses saberes como “ciência Potiguara”, “ciência Guarani” e assim por diante.

Essas discussões já resultaram em um artigo recente, publicado na revista Science. Esse trabalho foi desenvolvido por alguns membros da nossa rede, como a ecologista Carolina Levis, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e os pesquisadores indígenas João Paulo Lima Barreto e Silvio Sanches Barreto, ambos doutores em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), entre outros autores. Eles mostram como o diálogo entre ciências indígena e ocidental é fundamental para um futuro sustentável, principalmente no atual contexto de crise climática.

O que buscamos, ao final, é avançar nessa construção, no sentido de fazer ciência indígena de uma forma crítica. Estamos tentando dialogar com dois mundos igualmente importantes e relevantes para encontrar soluções para o atual contexto político e ambiental no Brasil e no mundo. Uma discussão liderada diretamente por acadêmicos indígenas, e que só é possível hoje graças ao fruto da luta dos anciãos que vieram antes de nós.

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