O Brasil destacou-se como uma referência na elaboração do Marco Civil da Internet, um marco legislativo concebido de forma colaborativa por diversos atores: a sociedade civil, o setor privado, o governo, a comunidade científica e especialistas reconhecidos por seu conhecimento técnico. Essa abordagem multissetorial permitiu que os brasileiros participassem ativamente do debate e contribuíssem para a definição de princípios fundamentais voltados à garantia de uma Internet aberta e acessível a todos.
Um desses princípios é o artigo 19, que tem sido objeto de questionamento quanto à sua constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Esse artigo determina que os provedores de aplicações de Internet somente podem ser responsabilizados por danos decorrentes de conteúdos de terceiros caso descumpram uma ordem judicial específica. No entanto, a ausência ou demora na colaboração de algumas plataformas tem intensificado o debate público sobre a constitucionalidade dessa disposição.
Essa discussão ganha ainda mais relevância no atual contexto, marcado pelo desafio de regular as plataformas digitais para combater a desinformação, os discursos de ódio e outras formas de conteúdo nocivo na Internet, ocorrendo em outros países, como nos EUA.
Nesse contexto, surge uma confusão sobre quem deve ser responsabilizado pelos conteúdos que circulam na internet, especialmente diante da terminologia jurídica adotada no Brasil para o termo “intermediário”.
Provedores de acesso e provedores de aplicações
O Marco Civil da Internet classifica os intermediários em duas categorias: provedores de acesso, responsáveis apenas pela infraestrutura e isentos de responsabilidade civil; e provedores de aplicações, que oferecem serviços como redes sociais, troca de mensagens e streaming, por exemplo. Como apenas os provedores de acesso são legalmente isentos de responsabilização – aqueles responsáveis por fornecer a conexão com à internet aos usuários finais -, o debate concentra-se nos provedores de aplicações e na forma como devem ser regulados, como a Meta.
A controvérsia é agravada pela falta de consideração dos aspectos técnicos relacionados ao funcionamento da Internet. Uma interpretação inadequada por parte do Supremo Tribunal Federal pode gerar prejuízos e fragmentar a rede. Foi nesse contexto que o Comitê Gestor da Internet no Brasil publicou uma nota técnica recomendando a classificação dos provedores com base no grau de interferência na disseminação de conteúdos.
Apesar dos esforços significativos para adoção de medidas judiciais que visem mitigar os efeitos negativos do uso inadequado das aplicações de Internet — especialmente nas redes sociais abertas — é fundamental considerar os aspectos técnicos da operação da rede.
Tratar todos os intermediários de forma homogênea pode acarretar responsabilizações indevidas para plataformas que, por sua natureza, não têm o dever de monitorar o conteúdo trafegado em seus serviços, como é o caso de aplicativos de mensagens e serviços de e-mail, como o Gmail da Google. Isso poderia comprometer a privacidade e a segurança dos dados, além de estimular práticas de vigilância excessiva.
Diante desse dilema, organizações da sociedade civil têm se dedicado à elaboração de guias técnicos para orientar de forma mais precisa esse debate. Um exemplo notável é o Policy Framework for Internet Intermediaries and Content, da Internet Society (ISOC), que recomenda que políticas e regulamentações se baseiem nas funções intermediárias exercidas, e não apenas na natureza jurídica das entidades, como ocorre com os provedores de acesso à Internet.
Na prática, muitas entidades desempenham múltiplas funções intermediárias. Por exemplo, uma plataforma de mídia social, além de permitir que usuários publiquem e interajam com conteúdos, pode também exercer outros papéis intermediários, como o envio de mensagens privadas, hospedagem de sites ou a organização de videoconferências ao vivo, como o Instagram e o Facebook.
Comitê gestor sugere três categorias
Outro documento fundamental é a nota técnica do Comitê Gestor da Internet no Brasil, entidade multissetorial que reúne representantes de diversos setores envolvidos na governança da Internet. A nota propõe uma tipologia preliminar para diferenciar os provedores de aplicações, dividindo-os em três categorias:
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Interferência nula – atuam apenas como meio de transporte e armazenamento, sem influenciar na circulação de conteúdos de terceiros;
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Baixa interferência – exercem influência limitada sobre os conteúdos, sem utilizar recomendações baseadas em perfis de usuários e apresentando risco reduzido, como plataformas colaborativas de edição de artigos e enciclopédias;
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Alta interferência – influenciam consideravelmente a circulação de conteúdos de terceiros e apresentam risco potencial. Essas plataformas utilizam perfilamento, disseminação em massa, recomendação algorítmica, microsegmentação e estratégias de engajamento, além de mecanismos de promoção e publicidade direcionada. As redes sociais se enquadram nesta categoria.
A importância da abordagem multissetorial
Fica mais uma vez evidente que a complexidade da internet demanda uma abordagem multissetorial, em que diferentes atores, com interesses diversos, colaborem na busca por soluções adequadas ao conjunto da sociedade. Embora o consenso seja difícil de alcançar, há um esforço claro para fornecer informações essenciais e alertar sobre os riscos de equívocos técnicos que possam comprometer o funcionamento adequado da rede.
Casos como a venda ilegal de terras na Amazônia por meio do marketplace do Facebook ou a disseminação do genocídio em Mianmar, facilitada pela propagação de discursos de ódio e pela organização de atos antidemocráticos, demonstram a necessidade de medidas eficazes para conter tais práticas.
No entanto, essas medidas não devem acarretar novos problemas, como a aplicação indiscriminada da responsabilidade dos intermediários sem distinção de suas funções ou definição clara de seu status. Uma abordagem desse tipo pode criar um ambiente de insegurança jurídica, frear a inovação e fomentar a vigilância excessiva, comprometendo assim os direitos fundamentais e o ecossistema digital como um todo.