Nos ensaios de rua, que antecedem o desfile, membros da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti celebram a vida de Xica Manicongo. Imagem: Lucas Cézar – apalavrimagem/Usada com permissão
Em São Cristóvão, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, as noites de segunda-feira viraram uma celebração às vidas transgênero. Desde o início dos ensaios do Carnaval de 2025, uma bateria formada por cerca de 300 pessoas comanda a comunidade, que canta o samba-enredo deste ano em alto e bom som:
Eu, travesti
Estou no cruzo da esquina
Pra enfrentar a chacina
Que assim se faça
Em tempos de leis que atacam identidade de gênero, ameaças e casos de violência contra pessoas LGBTQIA+, a escola de samba Paraíso do Tuiuti decidiu fazer um contraponto histórico: a vida da primeira travesti não-indígena reconhecida no Brasil é o tema do seu desfile anual, entitulado “Quem tem medo de Xica Manicongo?”.
Travesti, identidade de gênero feminina e latino-americana, é uma forma política de se reconhecer e ressignificar o termo usado de forma pejorativa por anos.
Para Bruna Benevides, presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a escolha é também contra uma agenda de ataques que têm se espelhado em outros lugares das Américas, como nos Estados Unidos de Donald Trump.
“Se o Trump, no seu discurso de posse, nomeou as pessoas trans como alvos que devem ser perseguidos, por outro lado o carnaval do Brasil está dizendo que aqui as pessoas trans são importantes”, avalia ela em conversa com o Global Voices.
Como parte de sua agenda política, Trump encerrou programas de diversidade e anunciou uma série de medidas que afetam diretamente direitos de pessoas LGBTQIA+. No Brasil, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, ao menos 77 leis anti-trans estão em vigor em 18 estados.
Quem foi Xica Manicongo
Tida como a primeira travesti do país, Xica Manicongo teve sua história perseguida e invisibilizada através dos séculos. Registros históricos mostram que, no século 16, ela foi trazida do Congo, na África, para ser escravizada em Salvador, Bahia — primeira capital do Brasil.
Lá, trabalhou como sapateira e foi acusada de sodomia por se recusar a usar roupas consideradas masculinas e desviar dos comportamentos esperados para um “homem”. Encontrou refúgio junto ao povo indígena Tupinambá, com o qual trocou saberes culturais e espirituais. Foi, também, uma sacerdotisa da religião afro-brasileira quimbanda.
Durante ensaio de desfile, a comunidade estendeu uma faixa onde se lê ‘Vidas trans importam vivas! Cidadania, dignidade e direitos’ | Imagem: Beatriz Gimenes/Usada com permissão
Agora, sua identidade e legado são destaques no enredo proposto por Jack Vasconcelos. Entrevistado pelo Global Voices, o carnavalesco comentou as propostas do tema:
Eu acredito que o nosso enredo é um manifesto. É um grito de resistência que começa no Brasil e vai pro mundo todo. Nosso desfile é visto por mais de uma centena de países e eu acho que serve como um recado para a comunidade LGBTQIAPN+ mundial, para não desanimar.
Para Vasconcelos, dar protagonismo à história de uma travesti na maior festa popular do país é uma resposta positiva, mas os direitos conquistados até então no campo político não podem ser dados como garantidos e precisam de atenção.
A comissão de frente da Tuiuti encena uma queima às travestis — fazendo referência à Santa Inquisição do século 16 e às violências e assassinatos de hoje | Imagem: Beatriz Gimenes/Usada com permissão
A Observatória, organização que monitora projetos de lei LGBTQIA+, revelou que só em 2024 ao menos 39 propostas anti-LGBT foram criadas por parlamentares no Brasil em Assembleias Legislativas estaduais e na Câmara dos Deputados. Discursos e leis contra linguagem neutra e outros direitos à população LGBTQIA+ são parte crescente da agenda de políticos conservadores no país.
Além disso, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais revelou que 122 pessoas trans foram assassinadas no ano passado. No Brasil, até mesmo a análise quantitativa de pessoas trans mortas enfrenta dificuldades: não existem dados oficiais e diferentes iniciativas civis seguem tentando traduzir a realidade.
Contra o medo
Bruna Benevides e Jack Vasconcelos avaliam que a incitação do medo é um dos motivos por trás da perseguição à comunidade trans.
A ativista explica que esse sentimento é usado estrategicamente pela extrema-direita, que desumaniza essa população. Para ela, o conservadorismo entende que “através da manipulação do medo, do pânico e da criação deste inimigo em comum vai implementar planos autoritários, anticientíficos e antidemocráticos”:
É preciso saber de onde vem esse medo, como se construiu esse imaginário em torno das pessoas trans, por que as pessoas têm medo das travestis e das mulheres trans… Qual é a visão que as pessoas têm que foi incluída e construída a respeito da nossa comunidade? Só a partir das possibilidades de respostas a estas perguntas a gente vai pensar em um processo de humanização da comunidade trans/travesti.
Jack defende uma espécie de vigília constante para conter a transfobia. “Esses ataques são recorrentes na história, a gente precisa estar sempre preparado […] firmar o território conquistado, não deixar retroceder/perder e construir mais”, diz.
Comunidade da Tuiuti toma a principal avenida do bairro de São Cristóvão durante os ensaios de rua | Imagem: Lucas Cézar – apalavrimagem/Usada com permissão
Ações governamentais
Para barrar agendas de governos conservadores de ocasião, como a atual gestão Trump, Bruna pontua a necessidade de que estados, países e os próprios grupos-alvos compreendam a importância de defender os direitos de pessoas transgênero. ”Nós estamos em uma guerra cultural de narrativas que está a todo instante tentando retroceder em uma agenda pró-direitos humanos e progressista”, alerta.
Em janeiro, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, em parceria com a Secretaria Nacional de Defesa das Pessoas LGBTQIA+, a ANTRA e outras organizações sociais, lançou a Agenda Nacional de Enfrentamento à Violência contra Pessoas LGBTQIA+, um conjunto de 14 ações voltadas à população em geral. Na prática, estão previstos cursos nas áreas de segurança pública e combate à homofobia.
Um pacto de protocolos a serem firmados por todo o país para o enfrentamento da LGBTfobia no judiciário e ações interministeriais com o Ministério da Saúde também foram divulgados no evento de lançamento.
O desfile
Marcado para acontecer no último dia do carnaval no Brasil, o desfile da Paraíso do Tuiuti deve contar com a presença de artistas, ativistas e parlamentares transexuais.
As deputadas federais trans Erika Hilton (PSOL) e Duda Salabert (PDT) desfilam em um dos carros alegóricos junto a outras convidadas representando a ascenção e o poder da comunidade na política brasileira.
Para Jack, aí está o sentido do enredo: mostrar para esta parcela da população LGBTQIA+ que sua história é “linda e enorme”.
A ANTRA participou do processo de curadoria, pesquisa e formação do desfile desse ano e, na visão de Bruna, o enredo da Tuiuti é comprometido, atento e popular, construindo um imaginário político que nos faz acreditar que a mudança é possível na América e em todo o mundo:
“A sociedade como um todo vai poder aprender que não é normal e não é possível ter medo de pessoas trans. Que não deve ser, inclusive, aceitável: que pessoas trans, portanto, são dignas de respeito, de uma liberdade assegurada”, aposta ela.