No contexto contemporâneo, a disseminação e o acesso ao conhecimento são reconhecidos como pilares fundamentais para o desenvolvimento social, econômico e cultural. As licenças de conteúdo aberto, como as licenças Creative Commons, emergem como ferramentas essenciais para equilibrar os direitos dos autores e o interesse público, promovendo um ambiente que favorece a colaboração e a inovação por meio de manifestações voluntárias de seus criadores. Essas licenças permitem que obras culturais e educacionais sejam compartilhadas e reutilizadas de maneira legal e ética, ampliando o alcance e o impacto do conhecimento na sociedade.
No entanto, no Brasil, a legislação vigente de direitos autorais, concebida em 1998, não acompanhou as transformações impostas pela digitalização e pela emergência de novas tecnologias de produção e disseminação da informação. Como resultado, o país se posiciona entre os mais restritivos globalmente no que se refere ao acesso ao conhecimento e à cultura, criando barreiras que inibem a democratização da informação. Essa defasagem legal impede, por exemplo, que bens financiados com recursos públicos sejam amplamente compartilhados, além de limitar o acesso a materiais essenciais para estudantes, pesquisadores e o público em geral.
A Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira, ao manter uma estrutura normativa que privilegia o bloqueio da informação em detrimento de sua livre circulação, não é coerente com diretrizes internacionais que visam harmonizar a proteção dos direitos de criadores e o direito da sociedade ao acesso ao conhecimento.
O Pacto Digital Global da ONU, por exemplo, enfatiza a necessidade de um ambiente digital mais aberto e inclusivo, o que evidencia a urgência de uma reforma na LDA para realinhá-la com as dinâmicas informacionais contemporâneas. Por essa razão, a Wikimedia Brasil, em colaboração com a Coalizão Direitos na Rede (CDR), lançou a campanha Conhecimento é Direito, buscando mobilizar a sociedade civil para essa pauta urgente.
O impacto da LDA na circulação do conhecimento
Atualmente, a legislação é fortemente restritiva e não prevê suficientes limitações e exceções, que poderiam liberar bens culturais e acadêmicos para usos com fins educacionais ou de interesse público, por exemplo, mas que hoje são restringidos por barreiras que limitam seu acesso de maneira que é, não raramente, pouco razoável.
Esse cenário compromete a difusão do conhecimento, uma vez que estudantes enfrentam dificuldades para acessar materiais essenciais, pesquisadores encontram obstáculos para compartilhar suas descobertas ou avançar coletivamente, e produções culturais são condicionadas a contratos restritivos de distribuição que, muitas vezes, beneficiam a indústria cultural em detrimento dos autores e autoras humanos, que são os efetivos criadores e deveriam estar no coração desse sistema.
Paradoxalmente, enquanto recursos públicos são investidos na produção do conhecimento, sua acessibilidade continua a ser limitada por um modelo de direitos autorais que beneficia grupos restritos, prejudicando a sociedade como um todo. Em contrapartida, países que adotaram modelos de licenciamento aberto têm experimentado um crescimento significativo na produção acadêmica e na inovação digital, fortalecendo a ciência e impulsionando a criatividade coletiva.
O mesmo se observa com a adoção de programas de código aberto e políticas públicas de ciência aberta, algo que foi explicitado durante a experiência da pandemia do COVID-19 e, mais recentemente, com a competição internacional de inteligências artificiais generativas.
A emergência da IA e novas questões sobre o acesso justo à informação Outro fator presente nesse debate é a emergência da inteligência artificial (IA) generativa, que reconfigura os processos de criação e distribuição de conhecimento.
Diferentes tecnologias dessa categoria têm ampliado possibilidades da criação de conteúdo, mas também levantam questões sobre direitos autorais e acesso justo à informação. A forma como essas IAs são treinadas influencia significativamente sua contribuição para a sociedade: bases de dados abertas e modelos de software livre, embora não sejam panaceias e apresentem riscos próprios, promovem maior diversidade e reduzem vieses algorítimicos, enquanto modelos restritos podem perpetuar desigualdades no acesso ao conhecimento.
Portanto, a modernização da LDA não deve se restringir à flexibilização das restrições impostas ao conhecimento público, mas também considerar os desafios contemporâneos das tecnologias emergentes. A formulação de políticas públicas que incentivem o uso de licenças abertas para produções financiadas pelo Estado, a ampliação e preservação do domínio público e a exigência de transparência na construção de bases de dados de IA são medidas essenciais para garantir um equilíbrio entre proteção de direitos autorais e acesso ao conhecimento.
O conhecimento deve ser um bem comum
A democratização do conhecimento deve ser um compromisso prioritário para qualquer sociedade que aspire ao desenvolvimento inclusivo. A modernização da LDA é um passo fundamental para assegurar que a informação e a cultura possam circular de maneira mais equitativa, impulsionando a educação, a ciência e a inovação no Brasil. A garantia de acesso livre ao conhecimento não apenas fortalece a produção acadêmica e cultural, mas também promove a inclusão digital e social, permitindo que um maior número de pessoas usufrua significativamente dos frutos da era digital.
O Brasil tem diante de si a oportunidade de alinhar sua legislação aos avanços da era digital e a normativas como o Pacto Digital Global, garantindo que o conhecimento seja, de fato, um direito acessível a todos e um bem público. A decisão de reformar a LDA no sentido de uma maior flexibilidade, refletindo mais adequadamente o desenvolvimento tecnológico e cultural das últimas décadas, e de adotar medidas que ampliem a distribuição do conhecimento definirá o papel do país na governança da informação nas próximas décadas.