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No Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, um relato da busca do povo Xavante por parceiros e tecnologias contra queimadas criminosas

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No Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, um relato da busca do povo Xavante por parceiros e tecnologias contra queimadas criminosas

Passados mais de quatro meses desde as queimadas criminosas que destruíram grande parte do Cerrado, no Mato Grosso, não se toca mais no assunto. Entendo que os brasileiros não queiram falar das tragédias após um ano que foi cheio delas – como as enchentes do sul e a violência policial em todo o país – mas é preciso contar o que os povos indígenas e ribeirinhos estão vivendo depois que a região foi devastada pelo fogo. Lembrar é importante para evitar que esses crimes contra a vida se repitam.

Eu vivo na aldeia Wederã, uma das 24 comunidades da Terra Indígena (TI) Pimentel Barbosa, que tem 330 mil hectares e cinco mil habitantes. Pimentel é um dos nove territórios Xavante demarcados no Mato Grosso. Sou professor da escola local, gestor ambiental com 30 anos de experiência e estou me formando em Pedagogia pela Universidade Estadual do Mato Grosso.

O fogo que varreu a maior parte da TI Pimentel Barbosa começou no final de agosto de 2024 e queimou dia e noite até outubro. Foi a segunda vez que enfrentamos as chamas criminosas. A primeira foi em 2019, ano em que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi eleito.

Quando os incêndios começaram, eu telefonei para a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) para avisar sobre os focos de calor e pedir equipamentos e a ajuda de brigadistas. Pedimos também para informar o IBAMA (Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis). Disseram que fariam isso, mas não veio ajuda alguma enquanto durou o fogo e nem depois. Avisamos também a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA), mas foi como falar com a parede.

Sabemos de onde veio esse fogo. Fazendeiros e grileiros ateiam fogo no pasto seco, e as chamas passam para o nosso lado. Outros colocam fogo na beira das estradas para correr pelas nossas terras. Eles querem expandir o plantio de monoculturas de soja, milho, algodão e, mais recente, de gergelim para dentro da nossa área. Lá atrás e agora, o fogo consumiu a vegetação, matou animais e nascentes.

Ficamos em grande perigo, subimos nos telhados para fugir das labaredas. Ninguém se feriu porque um vento forte veio e mudou a direção do incêndio. Os mais velhos pediram aos espíritos do vento para desviar o fogo e salvar as nossas vidas.

Em nota, as 44 etnias indígenas que vivem nessa área criticaram a falta de assistência aos que ficaram doentes por respirar tanta fumaça, com problemas respiratórios, desidratação e diarreia, bem como a inércia do poder público diante da crise de acesso à água potável.

O impacto do fogo criminoso que atravessou mais de 28 aldeias em toda a região na biodiversidade e no nosso dia a dia tem sido muito grande. Vimos cotias, tatus, jacarés correndo das chamas, desesperados, mas muitos morreram carbonizados. As árvores frutíferas que plantamos perto da aldeia viraram cinzas. Este ano não pudemos coletar pequi, sementes e frutos maduros que são parte da nossa alimentação. Estamos dependendo da compra de comida nos mercados da cidade.

Ter água potável é um desafio cada vez mais presente. Depois da queimada, o poço artesiano que usamos aqui na aldeia Wederã secou. O córrego onde tomamos banho e pescamos no verão também está secando. Estamos pegando água na aldeia vizinha, mas lá também vai acabar. Vamos ter que cavar mais fundo, aprofundar o nosso poço mais 100 metros, e isso custa um dinheiro que não temos.

A resposta à devastacão é a seca

Os warazú (os não indígenas) falam muito da crise climática, mas nós, indígenas, convivemos com os estragos provocados pelo desmatamento e ganância há décadas. Faz tempo que o clima da região está mudando em resposta às agressões ao ambiente. No ano passado, a água dos córregos começou a diminuir no mês de julho, quando normalmente isso acontecia por falta de chuva a partir de setembro.

No nosso território estão cerca de 230 mil hectares de Cerrado vivo. Somos seus guardiões. É um bioma muito diferente da Mata Atlântica, Caatinga e Floresta Amazônica. É chamado de berço das águas porque é muito rico em minas de água e nascentes que vão se juntando para formar córregos e os afluentes dos grandes rios, como Tocantins, Doce, das Mortes, Culuene, Araguaia.

A gente conversa com os parentes de outras aldeias, e todos falam que os rios estão diminuindo, se escondendo. Está acontecendo com o Araguaia, que já foi um rio muito forte, mas agora está quase morrendo. Uma parte disso é porque muitos fazendeiros estão tirando água do rio para fazer irrigação clandestina.

Vivemos aqui há centenas de anos e sabemos que isso também está relacionado com a destruição dos olhos d’água da região. Quando derrubam a vegetação para o plantio das monoculturas, os tratores destroem muitas nascentes, estragando as fontes naturais de onde a água brota. As matas ciliares que protegem essas nascentes também são arrasadas. Sem essa proteção, as águas começam a secar, não se juntam para formar os córregos e rios que deságuam em outros rios.

Tem ainda o problema dos agrotóxicos. Os pesticidas e fertilizantes usados sem controle pelos fazendeiros nas suas lavouras, muitos deles proibidos no Brasil e em outros países, chegam até nós de várias formas. Os ventos carregam o mau cheiro desses venenos borrifados cada vez mais perto das nossas aldeias, o que prejudica mais os idosos e crianças. A chuva escoa o veneno das plantações para os córregos e riachos e para dentro do solo, contaminando as águas que bebemos.

Estamos vendo também que os bichos que a gente caça estão diferentes. Eles vão até as plantações, comem soja e milho, ganham mais gordura e têm menos músculos. A carne tem outro gosto. E não sabemos se a carne deles guarda depósitos de pesticidas, se o que estamos comendo está bom ou contaminado.

Logo vai chegar de novo o tempo das queimadas

Em 2025, precisamos impedir que os incêndios iniciados por ação humana aconteçam pela terceira vez e destruam o que resta. Se as autoridades não fizerem nada, as chamas vão consumir tudo mais uma vez. Tínhamos e ainda temos esperança de que o governo federal mostre mais força para garantir que os responsáveis por deflagrar o fogo sejam contidos, responsabilizados e punidos.

Nós precisamos pensar e trabalhar junto com quem pode nos ajudar a formar brigadas bem treinadas e bem equipadas para combater os focos de calor. Temos que ter recursos para vigiar as áreas de risco, como a fronteira das nossas terras ancestrais com o rio das Mortes. É muito importante e urgente que a gente consiga acesso a tecnologias como monitoramento por satélite e drones para lutar contra a destruição do Cerrado por quem despreza a vida e vê apenas o lucro.

Estamos pensando um jeito e procurando parceiros para conseguir tudo isso. Estamos preocupados com o futuro. Será que os nossos filhos terão terra para viver? O Cerrado é a nossa vida e, se ele morrer, toda vida morrerá junto.

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