Depois de algumas semanas de cessar-fogo em Gaza, Israel retomou a ofensiva violenta, voltando a atingir centenas de civis. No primeiro dia de retomada dos ataques aéreos, mais de 400 pessoas morreram. Dentre elas, ao menos 174 eram crianças. De acordo a Defense for Children International, foi um dos dias com maiores taxas de mortalidade infantil na história de Gaza. As ofensivas continuaram por ataques terrestres nos dias seguintes, que deixaram até agora mais de 500 palestinos mortos, sendo mais da metade das vítimas mulheres e crianças. Algumas semanas antes, no final de fevereiro, os corpos de duas crianças israelenses, Ariel e Kfir Bibas, foram retornados a Israel, junto com o corpo de sua mãe, Shiri Bibas, e suas mortes foram confirmadas. Os três foram sequestrados vivos pelo Hamas no dia 7 de Outubro de 2023. Na época, Ariel tinha quatro anos e Kfir, nove meses.
Reflexão
Agora, antes de seguir com a leitura deste artigo, sugiro que você pare um pouco e pense em alguma criança que você conhece. Filhos, sobrinhos, afilhados, filhos de amigos, uma criança que você viu passar na rua hoje. Apenas pense em uma criança que de alguma forma faz parte da sua vida. Quando estamos em contato direto com uma criança, conseguimos acessar facilmente a concepção de que as crianças deveriam ser protegidas. Deveriam ter acesso a cuidadores carinhosos e responsáveis, à moradia, saúde, educação. É fácil conceber a ideia de que toda criança, assim como as que conhecemos no nosso cotidiano, deveriam ter direito a brincar e experimentar o mundo, sem o risco de serem violentadas, sem medo de morrer ou de ter seus cuidadores, familiares e amigos assassinados.
Propus essa reflexão porque, por algum motivo, o nível de entendimento e empatia que temos com as nossas crianças muitas vezes não é tão simples de acessar quando falamos de crianças de outro grupo social ou cultural. As crianças vítimas da escalada de violência em Gaza e em Israel são tão crianças quanto as que você conhece, valoriza e protege. A partir desta perspectiva, coloco aqui o questionamento – como ainda há qualquer tentativa de se justificar o que está acontecendo no Oriente Médio?
Vulnerabilidade total
Em situações de conflitos violentos, crianças são particularmente vulneráveis e expostas a riscos, incluindo a violência direta, o assassinato, a separação ou perda dos cuidadores e familiares, expulsão de suas casas, desnutrição, doenças, violência psicológica e sexual, dentre muitos outros. Embora existam leis relacionadas ao Direito Internacional Humanitário e a Convenção sobre o Direito das Crianças que prevejam a proteção de crianças e adolescentes nestes contextos, os riscos e a violência enfrentados por elas tem sido cada vez pior. De acordo com o UNICEF, 2024 marcou um dos piores anos na história da organização para crianças em zonas de conflito. O relatório aponta a Palestina como uma das localidades na qual essa violência se intensificou ao longo do ano passado. Em março do mesmo ano, inclusive, as Nações Unidas declararam que mais crianças morreram em Gaza desde 2023 do que em conflitos ao redor do mundo nos quatro anos anteriores.
Desde o início das ofensivas israelenses na Faixa de Gaza que se seguiram ao 7 de Outubro de 2023, estima-se que em torno de 18.000 crianças palestinas tenham sido assassinadas. A probabilidade desse número ser maior é bem alta, dado que devido aos incontáveis desmoronamentos e à falta de capacidade de busca, muitos corpos de vítimas seguem desaparecidos, soterrados em escombros. A violência em relação às crianças em Gaza vai para além da quantidade assustadora de mortes infantis.
Êxodos
Ao longo dos últimos 17 meses, milhares de crianças foram forçosamente deslocadas de suas casas, passando a viver em condições precárias e perigosas. O fato do deslocamento múltiplas vezes, ainda, gera a sensação de que não há lugar seguro para se refugiar. Os invernos em Gaza são bastante intensos, o que deixou todos os seus habitantes, especialmente as crianças, vulneráveis e expostas ao frio. Sob as ofensivas militares, bombardeios e deslocamentos, as crianças estão sem acesso à educação ou a condições de saúde básicas.
Esse é o caso de Mays, de 14 anos. Sua família se deslocou de sua casa fugindo dos bombardeios pesados, tendo em mente que saindo dali poderiam encontrar um local mais seguro, e passaram a viver em um abrigo. Mas foi neste abrigo que Mays perdeu suas duas irmãs, atingidas em um bombardeio. Ano passado ela relatou para o UNICEF que a risada das irmãs é a última coisa que lembra daquela noite. Mays também teve ferimentos na perna, que teve que ter pinos implantados, e ficou com paralisia parcial em sua face. Sua mãe contou que toda vez que ela está em um lugar fechado, tem crises de pânico e precisa ser levada para fora imediatamente. Mays também falou ao UNICEF sobre a falta de água: “Às vezes o caminhão vem, e cada um recebe uma pequena quantidade para beber. Caso contrário, temos que beber a água que usamos para nos lavar”.
A violência psicológica é outro fator muito impactante na vida de crianças e adolescentes em Gaza. O medo, o luto, o trauma estão presentes cotidianamente, afetando a saúde mental e física desde a primeira infância. De acordo com um relatório publicado pela War Child em dezembro de 2024, 49% das crianças expressou desejo de morrer e 96% sente que a morte é iminente.
Sama Tubail, de 8 anos, não tem mais um fio de cabelo em sua cabeça. Os médicos diagnosticaram a perda de cabelo de Sama como resultado de um choque nervoso, intensificado após o bombardeio da casa de seu vizinho em Rafah e da desestruturação de toda sua rotina desde que os ataques militares começaram. Durante uma entrevista a CNN, Sama declarou que está triste porque quer pentear seu cabelo de novo. Se dirigindo à sua mãe, Om-Mohammed, ela disse “Mamãe, estou cansada, quero morrer. Por que o meu cabelo não cresce? Quero morrer e ter meu cabelo de volta no paraíso, se Deus quiser”.
As crianças vivem, ainda, os riscos relacionados à falta de estrutura e de bens básicos. Com as fronteiras bloqueadas e a falta de ajuda humanitária suficiente, o aumento contínuo da fome e da desnutrição tem aumentado consecutivamente o número de crianças desnutridas, gerando muitas mortes em decorrência. Em Janeiro de 2025, a ONU estimou que mais de 60.000 crianças precisariam de tratamento para desnutrição em Gaza.
Sem hospitais e equipamentos médicos disponíveis, doenças têm representado um outro grande fator de violência. Milhares de crianças atingidas nos ataques militares ou acometidas por alguma doença não conseguem acessar um centro de saúde e, mesmo quando conseguem, o local muitas vezes não tem a estrutura necessária para tratá-las. O colapso do sistema de saúde, os deslocamentos em massa constantes e a falta de estruturas básicas geram, ainda, a propagação de doenças, como o surto de poliomielite que ocorreu em 2024.
Estatísticas aterradoras
A essas enormes violências e inseguranças, está somada a perda das mães, pais e familiares. Em Fevereiro de 2024, há mais de um ano, o UNICEF estimou que cerca de 17.000 crianças em Gaza estavam desacompanhadas ou separadas de seus cuidadores.
Do lado israelense ocorreram muitas perdas também. Crianças foram violentamente assassinadas durante os ataques do 7 de Outubro. Foi o caso de Liel e Yannai Hetzroni, irmãos gêmeos, que tinham apenas 12 anos e foram mortos no Kibutz Beeri. As também gêmeas Shahar e Arbel Siman Tov foram assassinadas no Kibutz Nir Oz, junto de seu irmão Omer, de apenas 2 anos e seus pais, Tamar e Yonatan. Mila Cohen, de apenas 9 meses, foi assassinada com um tiro no colo de sua mãe, Sandra, também no kibutz Beeri.
A estas histórias tristes somaram-se as crianças Bibas, Ariel e Kfir, que foram sequestrados e levados para Gaza vivos no dia 7 de Outubro de 2023, junto com a mãe, Shiri. Por mais de um ano, o paradeiro dos três era incerto, e a demanda por seu retorno mobilizou a sociedade israelense e milhares de pessoas ao redor do mundo. Há algumas semanas, a morte das crianças e da mãe foi confirmada, após o Hamas enviar seus corpos como parte do acordo de cessar-fogo que envolveu o retorno de reféns e a devolução dos corpos das vítimas. A confirmação da morte de Shiri e das crianças paralisou Israel.
Para além destes casos terríveis, muitas outras crianças israelenses perderam seus pais, mães, irmãos, irmãs e amigos desde o 7 de Outubro de 2023. Muitas sobreviveram, inclusive ao cativeiro do Hamas, mas têm que lidar com o trauma de ter vivido os ataques.
As situações das crianças palestinas e israelenses são claramente diferentes. Trazer casos dos dois lados não tem, aqui, a conotação de comparar ou de normalizar o que está acontecendo em Gaza, a gravidade do contexto e a profundidade da violação dos direitos humanos. A intenção é, exatamente, ressaltar a falta de propósito da perpetração do ciclo de violência. Ciclo esse que acontece há muitas décadas, e vem produzindo nada mais do que geração após geração de pessoas traumatizadas, enlutadas e com medo crescente do outro lado. Quando crianças e bebês de todos os lados são deliberadamente assassinados, o discurso de que a perpetração e a intensificação do uso da violência serve para proteger alguém perde completamente o propósito. Quem está sendo protegido?
Violentar crianças, para além de representar um atentado profundo aos direitos humanos, é também perpetuar o ciclo de violência. As crianças que sobrevivem tornam-se adultos que carregam todas as marcas das perdas. Como cultivar uma possibilidade de um possível futuro acordo de paz entre pessoas que vivem esses contextos tão violentos, perdem tanto e estão tão traumatizadas?
O que já era comprovado e ficou ainda mais claro nos últimos 17 meses é que não tem espaço seguro para ninguém nesse suposto conflito. A política de persistir na violência e intensificar ainda mais as investidas militares só têm a possibilidade de gerar mais perdas e mais inseguranças, para todos os envolvidos nesse conflito. Tudo que temos acompanhado no último ano e meio, inclusive a quebra do cessar-fogo, não está minando somente uma possibilidade de diminuição da violência no presente, mas está gerando toda uma geração de pessoas profundamente traumatizadas e minando qualquer possibilidade de resolução futura.