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No Marajó, pescadores lutam pelo seu modo de vida em meio à ameaça de desmonte do licenciamento ambiental

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No Marajó, pescadores lutam pelo seu modo de vida em meio à ameaça de desmonte do licenciamento ambiental

Na pequena vila pesqueira de Jubim, no Arquipélago do Marajó, a rotina segue o ritmo das marés, das chuvas e do nascer e pôr do sol. A depender do dia e da estação, os pescadores e pescadoras escolhem o que a natureza tem para oferecer, sejam frutas como o açaí, caranguejos do manguezal ou peixes que capturam com suas embarcações.

Essa conexão profunda com a natureza não é apenas uma questão de sobrevivência. Em Jubim, natureza e vida social se entrelaçam em uma rede complexa de saberes, tradições e práticas cotidianas. Localizada onde a floresta amazônica encontra o Oceano Atlântico, na Baía do Marajó, Jubim se revela como um “maretório” – espaço onde o território se mistura entre o mar e a terra.

No entanto, esse modo de vida está sob ameaça. Pressões externas, como a construção de grandes portos, a exploração de petróleo, grandes rotas de navegação e o cercamento de áreas de extrativismo, colocam em risco a relação histórica da comunidade com a terra, o mar e a natureza.

Para avaliar as ameaças geradas pelo modelo de desenvolvimento implementado na zona costeira paraense sobre a sociobiodiversidade do maretório da comunidade tradicional de pesca de Jubim, iniciamos o projeto Maretórios Amazônicos. Ele é financiado pelo edital Amazônia+10, e tem apoio da Fapesp, Fapespa, Fundação Araucária e CNPq.

Esta avaliação vem sendo realizada por meio da produção de conhecimentos transdisciplinares, a partir do diálogo entre o conhecimento científico e os saberes tradicionais de Jubim.

Em Jubim, a relação com o ambiente vai muito além do que os serviços ecossistêmicos conseguem explicar. A natureza é vista como parte da identidade comunitária, da história familiar e dos modos de vida. Foto: Lara Sartorio/Projeto Maretórios

Serviços ecossistêmicos: limites e novas abordagens

Ao estudar a relação entre comunidades e natureza, muitos pesquisadores usam o conceito de serviços ecossistêmicos. Essa ideia ganhou força após a Avaliação Ecossistêmica do Milênio, um programa global de avaliação dos impactos das mudanças nos ecossistemas no bem-estar humano. Os serviços ecossistêmicos descrevem benefícios como alimento, água limpa, regulação do clima e lazer.

No entanto, essa visão tem limitações. Ela tende a tratar a natureza como um fornecedor de “serviços” para os humanos, o que pode reduzir a complexidade dessas relações a uma simples troca de recursos.

Para superar isso, foi criada a abordagem das “Contribuições da Natureza para as Pessoas” (NCP, na sigla em inglês), que valoriza também os saberes tradicionais, as conexões emocionais e os significados culturais da natureza.

A terminologia “Contribuições da Natureza para as pessoas” é uma abordagem analítica, conceituada pelo Painel Intergovernamental para a Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, em inglês), que busca ampliar a compreensão das relações entre humanos e o ambiente, valorizando não apenas os benefícios materiais fornecidos pelos ecossistemas, mas também os vínculos culturais, espirituais e sociais que as comunidades estabelecem com a natureza.

Contribuições da natureza para as pessoas

Em Jubim, a relação com o ambiente vai muito além do que os serviços ecossistêmicos conseguem explicar. A natureza é vista como parte da identidade comunitária, da história familiar e dos modos de vida.

Para entender como os moradores da vila percebem a natureza e seus recursos, os pesquisadores do Projeto Maretórios Amazônicos usaram metodologias participativas, como mapeamento comunitário, acompanhamento das rotinas de moradores, entrevistas e oficinas e até mesmo fotografias feitas pelos próprios moradores, buscando registrar as contribuições que a natureza oferece para a comunidade.

Em Jubim, nota-se que essas contribuições vão muito além do alimento. A natureza fornece também medicamentos, materiais para construção de casas e barcos, espaços de lazer e elementos culturais. Frutas como açaí, bacaba e bacuri garantem renda e alimentação. Plantas como andiroba e pau da verônica são usadas para curar doenças e aliviar dores.

Além disso, a mata e os manguezais de Jubim oferecem um espaço para práticas culturais, esportivas e espirituais. Locais como as praias e os igarapés não são apenas áreas de pesca, mas também de encontro, celebração e memória.

Mapeando saberes, conflitos e resistências

Durante dois anos de projeto, notamos que, apesar da riqueza natural, a comunidade enfrenta uma série de desafios:

  • Declínio da pesca: Nas últimas décadas, os moradores perceberam a queda na quantidade de peixes ou conflitos de uso em áreas de pesca. Para conseguir boas pescarias, muitos precisam viajar por dias até áreas mais distantes. Isso é atribuído a fatores como a passagem de grandes navios, impactos da pesca industrial, uso de redes de malha fina e efeitos das mudanças climáticas.

  • Mudanças climáticas: Os moradores notam mudanças no ciclo das marés, no comportamento dos caranguejos e até na erosão das margens dos rios.

  • Especulação imobiliária: Áreas tradicionais de coleta de frutos e extrativismo vêm sendo cercadas por empreendimentos imobiliários, impedindo o acesso da comunidade a recursos naturais.

  • Grandes projetos de infraestrutura: Portos, ferrovias e explorações de petróleo planejam se instalar na zona costeira paraense, aumentando os riscos para a biodiversidade e a autonomia local.

Esses conflitos formam uma teia de ameaças que, se não forem contidas, podem desestruturar o modo de vida tradicional da vila.

Com base na experiência em Jubim, propomos cinco princípios que podem contribuir com uma gestão costeira mais justa:

1. Fortalecimento comunitário: Apoiar as iniciativas locais, garantindo a autonomia e o protagonismo da comunidade.

2. Co-produção de conhecimento: Unir saberes tradicionais e científicos para planejar o futuro de forma inclusiva.

3. Advocacy e negociação: Garantir que a comunidade tenha voz ativa e poder nas tomadas de decisões que afetam seu território.

4. Valorização cultural: Incentivar práticas tradicionais como a pesca artesanal e o extrativismo sustentável.

5. Cuidado ambiental: Promover o uso responsável dos recursos, acompanhando os ciclos naturais.

A importância de escutar e aprender com Jubim

A adoção de metodologias participativas vai além da simples coleta de dados. Ela busca que os moradores sejam protagonistas na produção de conhecimento sobre seus territórios.

No entanto, é importante lembrar que mapas também podem ser usados como instrumentos de poder. Para que a cartografia participativa realmente fortaleça a comunidade, ela precisa estar ligada a processos que garantam autonomia e respeito aos saberes locais.

Foi com esses princípios que o projeto buscou construir um mapeamento do maretório de Jubim que não se esgota no papel. Ele é parte de um objetivo mais amplo de valorização dos modos de vida locais e de luta por justiça socioambiental.

A história de Jubim mostra que conservar o meio ambiente é também preservar culturas, modos de vida e histórias que se entrelaçam com a natureza. As ameaças são grandes, mas o potencial da comunidade é ainda maior. Apostar no fortalecimento local e nas práticas tradicionais relacionadas à biodiversidade é o caminho para garantir que o ritmo das marés e das chuvas continue guiando as gerações futuras em Jubim e em tantos outros territórios costeiros da Amazônia.

Num momento em que a Amazônia e suas populações tradicionais estão sob intensa pressão, experiências como a de Jubim mostram caminhos alternativos para a relação entre humanos e natureza.

Um exemplo marcante dessa abordagem alternativa pode ser visto nas práticas de pesca comunitárias, respeitando os períodos de reprodução e garantindo a sustentabilidade do estoque pesqueiro local. Além disso, por meio da escola pública de Jubim, são promovidos encontros para fortalecer a identidade cultural e o sentimento de pertencimento das novas gerações, mostrando que a relação com a natureza pode ser construída com respeito e reciprocidade.

Em vez de tratar o ambiente como um recurso a ser explorado, a comunidade de Jubim nos ensina a enxergar a natureza como parte da vida, da cultura e da memória. Proteger esses modos de vida é essencial não apenas para garantir a existência dessas comunidades, mas também para inspirar novas formas de pensar nosso futuro comum.

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