Em abril de 2023, a astrônoma e astrofísica Makenzie Lystrup tornou-se a primeira mulher a dirigir o Centro de Voos Espaciais Goddard, um dos principais núcleos de pesquisas da Nasa. Este fato, por si só, poderia ser o bastante para que a astrofísica fosse vista como alguém a fazer história em sua área de atuação. Mas um detalhe chamou a atenção: em sua cerimônia de posse, ao fazer o tradicional juramento, Lystrup usou, em vez da Bíblia, o livro “Pálido ponto azul”, do astrônomo e divulgador científico Carl Sagan. Nos Estados Unidos, é comum que pessoas façam um juramento com as mãos sobre obras simbólicas, tal qual a Bíblia (mais usual), o Corão ou a Constituição. Mas aquela era a primeira vez, ao menos a ser noticiada, que um livro de Sagan estava sendo usado.
Lystrup explicou que a homenagem a Sagan se devia à série televisiva Cosmos, que serviu para despertar sua paixão pela astronomia, e à importância de Sagan como alguém que se esforçou para tornar a ciência acessível ao público. O detalhe da citação a Cosmos possivelmente é o que explica certa conotação religiosa da cerimônia envolvendo o livro de Sagan como substituto da Bíblia. Com a aproximação do “Sagan Day” em 9 de novembro, que aproveita a data de seu aniversário para lembrar o legado do divulgador científico, vamos revisitar esta obra que manifesta uma visão poética e espiritualista da ciência e influenciou gerações de cientistas de várias áreas.
Estreia em 1980
Cosmos: uma viagem pessoal estreou na TV dos EUA em 28 de setembro de 1980, há 45 anos. No Brasil, a série só seria exibida pela primeira vez pela Globo entre agosto e novembro de 1982. A primeira frase pronunciada por Sagan, no início do primeiro episódio é: “O Cosmos é tudo que existe, que já existiu e que sempre existirá”. A ideia de eternidade, de algo que transcende ao tempo, é semelhante à noção de Deus cunhada por algumas das principais religiões do mundo, como o próprio cristianismo.
Assim, por meio de uma linguagem poética e emotiva, Sagan, ao longo dos 13 episódios da série, deslocava a transcendência e espiritualidade características das religiões e as reposicionava no empreendimento científico. Uma tática discursiva engenhosa, que se propõe a explicar como a ciência funciona, mais do que apenas mostrar suas descobertas. E que, paradoxalmente, exalta a razão por meio da emoção, de uma narrativa poética. Um reencantamento do mundo por meio da ciência
Essa tática funcionou. Estima-se que Cosmos tenha sido exibida em 60 países e assistida por mais de 500 milhões de pessoas. A série foi apontada como um marco da divulgação científica mundial pela grande popularidade alcançada ao traduzir conceitos complexos de forma compreensível para o público, e por ter influenciado gerações de cientistas. Dentre eles, a própria Makenzie Lystrup. Trata-se, sem dúvidas, de uma das mais bem-sucedidas experiências de divulgação científica para o amplo público da TV no século 20.
Visão espiritualista da ciência
Como bom divulgador científico, Carl Sagan recorria a elementos do cotidiano, familiares do grande público, para, a partir deles, introduzir conceitos e apresentar realizações da ciência. As religiões e crenças em geral foram parte significativa desses elementos. Na série, ora ele confrontava explicações religiosas e místicas com explicações científicas, valendo-se principalmente do conflito narrativo para dar movimento às sequências; ora emulava o discurso religioso criando um certo deslocamento de sentido, como citado.
Cosmos é um ícone da visão espiritualista que Sagan tinha da ciência. Essa visão pode ser melhor compreendida quando estudamos outras obras suas, como o livro “O Mundo Assombrado Pelos Demônios”], no qual afirma:
“Espírito vem da palavra latina que significa ‘respirar’. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra ‘espiritual’ nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. (…) A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de jubilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas”.
O título completo do livro – “O Mundo Assombrado Pelos Demônios: A ciência vista como uma vela no escuro” – demonstra uma outra característica de Sagan que marca a série Cosmos: uma certa perspectiva iluminista sobre ciência e história. Há em vários dos episódios da série uma polarização entre a Idade Média e a Idade Moderna. Sagan identifica o surgimento da ciência na Grécia Antiga, com a destruição da Biblioteca de Alexandria sendo o ponto de virada para o início de um declínio. O período medieval, por sua vez, representa esse declínio: um longo hiato do pensamento e desenvolvimento científicos, provocado pelo autoritarismo da religião e pelo misticismo. Assim, ele reproduz a narrativa iluminista, que se propôs como a luz em contraposição à Idade das Trevas (o medievo).
Essa narrativa a respeito da Idade Média como um período sombrio, no entanto, começou a ser significativamente contestada na segunda metade do século 20. O trabalho de historiadores como Jacques Le Goff aponta que o período também teve muitos avanços culturais, religiosos, sociais e intelectuais.
Continuações no século 21
Cosmos ganharia uma continuação em 2014. Desta vez, a série seria apresentada pelo astrofísico Neil deGrasse Tyson. Essa segunda versão – “Cosmos: uma odisseia no espaço-tempo” –, assim como a primeira, é composta por 13 episódios. Por conta da mítica da série original, que só fez crescer ao longo de então 34 anos, a nova versão foi exibida pelo canal NatGeo logo em sua estreia já em 170 países, e precedida por um vídeo do então presidente americano Barack Obama. Nele, Obama falou sobre o espírito de “sonhar alto”, “de descoberta” que Sagan sintetizara na versão original.
A Cosmos de Tyson – um ex-aluno de Sagan e também já um conhecido divulgador científico – bateu recorde de maior lançamento global da história da TV. Essa continuação foi escrita novamente pela pesquisadora e divulgadora Ann Druyan, viúva da Sagan, e pelo físico Steven Soter, ambos coautores da versão original, juntamente com Sagan.
O próprio presidente americano apresentando o lançamento da série não foi à toa, e revela o peso da obra para a cultura daquele país. Vale lembrar que o livro “Cosmos”, escrito por Sagan e que inspirou a série de TV, foi incluído pela Biblioteca do Congresso americano na lista dos 88 livros que deram forma aos Estados Unidos (“88 Books That Shaped America”, 2012). Na mesma lista estão obras como “O Caminho da Riqueza”, de Benjamin Franklin; “Pragmatismo”, de William James; e “O Mágico de Oz”, de L. Frank Baum.
Neil deGrasse Tyson apresentaria ainda a terceira temporada da série, “Cosmos: mundos possíveis”. Lançada em 2020 novamente pela NatGeo, ela foi transmitida para 172 países, em 43 idiomas. Escrita, dirigida e produzida por Ann Druyan e Brannon Braga, “Cosmos: mundos possíveis” contou ainda com os produtores executivos Seth MacFarlane (criador de Family Guy, animação mais conhecida no Brasil como “Uma família da pesada”) e Jason Clark.
Assim como as versões anteriores, essa terceira temporada também conta com 13 episódios e manteve formato narrativo bem semelhante às de 2014 e 1980, ressalvados os avanços tecnológicos do audiovisual ao longo de quatro décadas. As dualidades envolvendo ciência e religião se tornaram menos constantes na temporada de 2020 se comparada às anteriores. Permaneceu, entretanto, uma narrativa com muita história e filosofia que preza pela popularização do pensamento científico e faz um apelo humanista ao uso da razão na preservação do planeta e de nós mesmos.



			

                               
                             

		
		
		
		