A laureada com o Prêmio Nobel da Paz acaba de ser anunciada em Oslo: Maria Corina Machado, a resiliente líder da oposição ao regime de Nicolás Maduro na Venezuela. O anúncio veio em meio ao frisson provocado pela insistência do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em uma candidatura própria ao prêmio.
Embora o anúncio provavelmente tenha frustrado o presidente norte-americano, ele tem motivos para comemorar. Além de a laureada ter dedicado o prêmio a Trump, a escolha reforça a política de “pressão máxima” que os EUA vêm aplicando contra a Venezuela. Aos olhos de um político racional, isso dificilmente seria considerado uma derrota para Trump.
O Nobel da Paz, ao contrário dos demais prêmios Nobel decididos por instituições suecas, é concedido por um comitê indicado pelo Parlamento norueguês. Trata-se, portanto, de uma premiação que inevitavelmente se insere no jogo político. É plausível supor que a postura do governo americano tenha influenciado o cálculo deste ano.
Agora, considerando o mérito de Maria Corina Machado: este é um daqueles casos em que o prêmio supõe um comportamento futuro da laureada, já que o conflito na Venezuela ainda está longe de uma resolução. Ninguém pode, de forma plena, assumir o mérito por uma paz que ainda não ocorreu.
Tampouco sabemos se Maria Corina, caso venha a conquistar o poder, agiria de fato como uma democrata. Mas vale refletir sobre o que a ciência política sabe sobre a relação entre democracia e paz. Talvez isso ajude a entender melhor a lógica da decisão do comitê.
O que indicam laureados anteriores
Na edição do ano passado, o Nobel de Economia – que, vale lembrar, não faz parte dos prêmios originalmente criados por Alfred Nobel – foi concedido a três pesquisadores, Acemoglu, Johnson e Robinson. Eles desenvolveram modelos teóricos comportamentais que buscam explicar como a economia e a política se influenciam mutuamente. Um dos principais argumentos do trio é que a democratização pode ser usada pelas elites como uma forma de sinalizar um compromisso com a redistribuição de renda. Isso ajudaria a acalmar (ou desorganizar) movimentos populares dispostos a ações violentas para derrubar o governo. Trata-se do chamado “conflito distributivo”. Dentro dessa lógica, promover a democracia pode ser visto como uma forma de trabalhar pela paz — e esse contexto aproxima Maria Corina nesse campo de interpretação.
Um exemplo emblemático nesse sentido foi o Nobel da Paz de 1993, dividido entre Nelson Mandela e Frederik De Klerk. Frequentemente se esquece do segundo, então presidente da África do Sul e líder do Partido Nacional, o partido supremacista branco que sustentava o regime do Apartheid. A transição democrática sul-africana é considerada um dos casos em que um acordo político entre elites produziu uma mudança de regime – do autoritarismo para a democracia – e com ela uma paz duradoura, mesmo em um cenário de extrema violência política. Outras teorias da ciência política, como o elitismo democratico, buscam entender fenômenos desse tipo.
Um contexto bem diferente
A situação na Venezuela, porém, é muito distinta. Existe consenso acadêmico sobre o avanço do autoritarismo no país. Hoje, dificilmente o regime de Maduro poderia ser considerado uma democracia. Essa deterioração institucional é estimada por diversos índices, entre eles o V-Dem — produzido em base a um trabalho de avaliação estandardizada feito por uma ampla equipe internacional e sumarizado por modelos estatísticos sofisticados. Mas reconhecer que a Venezuela já não é uma democracia não transforma automaticamente seus opositores em democratas.
Desde a eleição de Hugo Chávez, em 1999 – ainda sob instituições plenamente democráticas – a oposição venezuelana tem oscilado entre diferentes estratégias: resistência pacífica (como passeatas e greves), participação institucional (via eleições), mas também ações claramente não democráticas, como a tentativa de golpe em 2002 e a incitação de um levante militar em 2019. Soma-se a isso a proximidade com a direita radical e antidemocrática nos Estados Unidos de Trump e no Brasil de Bolsonaro.
Como mostrou o caso sul-africano, transições para a democracia e processos de pacificação se tornam mais prováveis quando elites rivais entram em acordo para garantir segurança mútua. Esse cenário, porém, parece distante na Venezuela. O governo de Maduro opta pela repressão sistemática, enquanto os opositores depositam suas esperanças em uma possível intervenção militar — interna ou externa.
Democratizar o regime certamente é do interesse da oposição, que provavelmente venceria eleições livres, segundo diversas estimativas (incluindo uma liderada pelo acadêmico brasileiro Dalton Figueiredo da UFPE).
No entanto, premiar a oposição simplesmente por preferir a democracia é, em última instância, reconhecer a racionalidade de sua estratégia — algo louvável em tempos de irracionalidade política no Norte global, mas talvez insuficiente para figurar no Olimpo dos promotores máximos da paz junto a Martin Luther King, outro laureado pelo Nobel da Paz.
Maria Corina, é claro, tem seus méritos. Oriunda da elite e apoiada por empresários, poderia ter deixado o país para viver confortavelmente no exterior, como muitos da classe alta venezuelana.
Sua escolha por permanecer — atualmente de forma clandestina — revela coragem e ambição política em um mundo cheio de políticos excessivamente cautelosos. Isso provavelmente é ainda mais notável do ponto de vista europeu, onde o medo das reações autoritárias e erráticas do governo Trump parece justificar muitas decisões, como a de premiar a oposição venezuelana.
No fim das contas, o Nobel foi para uma aliada de Trump, ele que tem promovido de tudo menos a paz no Caribe. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva foi um dos poucos grandes atores a salientar na ONU o caráter arbitrário dos ataques do governo americano a embarcações supostamente tripuladas por traficantes de drogas saídos da Venezuela.
Esses ataques já deixaram mais de uma dezena de mortos, segundo os próprios EUA. A política de pressão máxima incentiva o governo Maduro a se armar e a fechar mais o regime, uma vez que a oposição interna é vista como aliada de um inimigo externo declarado.
Trump não terá esta medalha dourada para adornar o salão oval, para combinar com o novo estilo Luís XIV banhado a ouro que impôs a sala histórica. Mas não deveria estar insatisfeito com a decisão tomada em Oslo.