A ameaça da proliferação nuclear voltou com força ao centro da política internacional. O colapso de tratados históricos entre as potências, o avanço do programa iraniano e a modernização dos arsenais dos Estados Unidos, Rússia e China inauguram uma nova corrida armamentista com implicações globais — inclusive para o Brasil.
Nas últimas semanas, o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Rafael Grossi, expressou publicamente sua preocupação com esse cenário. Segundo ele, países que até pouco tempo sustentavam o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) como pilar estratégico agora questionam se esse compromisso ainda faz sentido. A dúvida não é trivial. A confiança no “guarda-chuva nuclear” dos Estados Unidos está se deteriorando entre aliados históricos, como Coreia do Sul, Japão e Polônia, diante do retorno de um pouco previsível Donald Trump ao centro do cenário político.
O Irã, por sua vez, já possui mais de 400 kg de urânio enriquecido a 60%, patamar próximo ao necessário para fabricar uma bomba nuclear. Israel considera abertamente uma ação militar preventiva. Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita anuncia sua intenção de enriquecer urânio, enquanto a China expande seu arsenal e investe pesadamente em tecnologia hipersônica. O que era uma crise latente se converte rapidamente em um ambiente de insegurança estratégica global, com implicações imprevisíveis.
O Brasil, neste contexto, não é uma peça marginal. Ao contrário, trata-se de um país com dimensões continentais, dotado de um programa nuclear próprio, ambições de liderança regional e uma trajetória consolidada no campo da diplomacia multilateral. Desde a redemocratização, o Brasil tem se posicionado como defensor do desarmamento e do uso pacífico da energia atômica. A Constituição de 1988 (artigo 21, inciso XXIII, inciso 1), proíbe expressamente o uso da energia nuclear para fins militares, e o país é signatário tanto do TNP quanto do Tratado de Tlatelolco, que estabelece a América Latina e o Caribe como zona livre de armas nucleares.
Esse histórico, porém, não impede questionamentos estratégicos. O Brasil domina a tecnologia de enriquecimento de urânio e investe, por meio da Marinha, na construção de um submarino de propulsão nuclear. Trata-se de um projeto legítimo, que segue os protocolos internacionais, mas que inevitavelmente levanta dúvidas em um cenário de desconfiança crescente e rupturas normativas.
A entrada do Irã no BRICS, oficializada em janeiro de 2024, torna essa equação ainda mais complexa. Ao lado de China, Rússia, Índia e África do Sul, o Brasil agora compartilha espaço diplomático com um país que, segundo a AIEA, apresenta indícios de violações graves de suas obrigações no regime de não proliferação. Esse novo arranjo amplia as contradições do grupo e pressiona seus membros a assumirem posições mais claras. O Brasil, historicamente comprometido com a transparência e a legalidade internacional, terá de decidir se reforça sua coerência diplomática ou se adota uma postura mais pragmática diante de seus novos parceiros.
Mais do que uma questão de princípio, o cenário nuclear impõe ao Brasil uma série de decisões de política externa com consequências de longo prazo. Ao optar por manter seu compromisso com o desarmamento, o país preserva sua credibilidade internacional e, quem sabe, buscará liderar iniciativas que revitalizem o TNP, promovam a transparência e estimulem a criação de novas zonas livres de armas nucleares. Caso escolha o caminho do silêncio ou da ambiguidade, corre o risco de perder protagonismo, tanto na América do Sul quanto em fóruns multilaterais como a ONU e a própria AIEA.
Por outro lado, o Brasil terá de lidar com a crescente assimetria entre sua postura normativa e o comportamento de potências emergentes como Índia e China (ambos do BRICS original), que modernizam seus arsenais sem aceitar restrições legais comparáveis. Em tempos de rearmamento acelerado, a voz brasileira tenderá a soar como um eco isolado ou, ao contrário, como um contraponto necessário à escalada da dissuasão.
Por fim, há a dimensão regional. A América do Sul, até hoje uma zona de relativa estabilidade e livre de armas nucleares, encontra-se exposta a possíveis impactos dessas transformações. Cabe ao Brasil — e talvez lhe recaia a obrigação — reafirmar seu compromisso com a não proliferação, fortalecendo a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) e propondo medidas adicionais de confiança mútua entre os países do Cone Sul. Ignorar essa oportunidade significaria abrir espaço para interpretações equivocadas sobre os rumos da política nuclear brasileira.
Num momento em que o mundo se reaquece em disputas armamentistas, o Brasil precisa decidir se será apenas um observador ou se reafirmará seu papel histórico de defensor de uma ordem internacional baseada em regras, cooperação e segurança compartilhada. A questão ultrapassa os limites da política externa. Trata-se do lugar que o país pretende ocupar em um mundo cada vez mais volátil.