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Nova diplomacia tarifária: O neoimperialismo de dados de Trump contra a soberania digital

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Nova diplomacia tarifária: O neoimperialismo de dados de Trump contra a soberania digital

O The Conversation Brasil publica hoje o último artigo de uma série sobre desinformação, fenômeno que desafia a integridade do debate público e afeta a democracia, a ciência e os direitos humanos. A publicação é fruto de uma parceria com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), o International Center for Information Ethics (ICIE), e a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD).


A natureza complexa da relação entre tecnologia e poder nunca foi mais evidente. Plataformas tecnomidiáticas tornam-se não apenas canais de comunicação – e de venda de anúncios via datificação dos usuários -, mas também atores centrais na conjuntura sociopolítica atual, fenômeno que o bielorrusso Evgeny Morozov chama de “ascensão das Big Techs e a morte da política”.

Nas últimas quatro décadas, o cenário midiático mudou de um ambiente definido pela lógica da sociedade de massa controlado por um punhado de grupos de comunicação para um cotidiano desenhado pela internet e organizado horizontalmente numa sociedade em rede.

No meio do caminho, o poder dos grupos de mídia tradicionais – e as receitas de anúncios que captavam – foi aos poucos sendo transferido para um oligopólio digital formado principalmente por empresas americanas, como Meta, Alphabet, Microsoft, Nvidia, Amazon e Apple, mas também chinesas, como Tencent (redes sociais, jogos), Alibaba (e-commerce), ByteDance (TikTok) e Xiaomi (smartphones, eletrônicos), para ficar nas mais conhecidas.

Esses gigantes da tecnologia estão remodelando a distribuição de capital social e simbólico através do fenômeno da plataformização e do aumento de consumo de notícias não mais em portais tradicionais de notícias, mas nas redes sociais.

Pior: a partir de um modelo de negócios baseado na monetização das interações e na criação de bolhas e câmaras de eco nas redes, a polarização extrapolou a política e passou a afetar até mesmo as relações pessoais, gerando riscos genuínos para os sistemas democráticos, como alerta a matemática Cathy O’Neil.

Hoje, uma vez que as Big Techs alcançaram quase total domínio sobre o fluxo de informações mundial, sua capacidade de influir no debate público através de narrativas radicais e desinformação é gigantesco.

O poder da tecnologia e a ameaça imperialista

A visão mecanicista da tecnologia no capitalismo neoliberal, baseada em noções de racionalidade e eficiência como chave para o bem-estar econômico, coloca a inovação técnica como força motriz para a prosperidade, marginalizando preocupações sociais e ambientais.

Como observam os estudiosos da ciência da informação, a nuvem não é uma abstração: é um data-center que consome uma quantidade exorbitane de água e energia. E numa sociedade plataformizada e datificada como a atual, o gerenciamento de dados e o da infraestrutura baseada em tecnologia estão totalmente relacionados a instrumentos políticos e econômicos de controle social.

Essa dominação tecnológica por um cartel de empresas americanas (como é o caso do Brasil, tanto em termos de redes sociais, mas também em serviços de estocagem e administração de dados, os data centers, bem como Inteligência Artificial e até mesmo serviços de streaming) gera preocupações sobre a soberania nacional, incluindo grupos de nações que seguiram o caminho do mercado aberto, como foi o caso da União Europeia, que reconheceu a autonomia digital como um objetivo estratégico.

A nova realidade é chamada de colonialismo de dados, um fenômeno da prática exploratória do colonialismo clássico e sua adaptação para os fenômenos de plataformização, datificação e o capitalismo de vigilância como um todo. Em tal situação, o controle da informação, fluxos, infraestruturas e cabos submarinos e satélites são de propriedade e monopolizados por grandes empresas de tecnologia.

O ponto central dessa disputa foi escancarado em fevereiro de 2025, quando o governo de Donald Trump publicou um memorando detalhando ações de retaliação contra países que impusessem obstáculos regulatórios, tributários ou de controle de conteúdo às empresas americanas. As diretrizes de Washington, embora se dissesse focadas na Europa, visam a qualquer Estado que limite a operação das Big Techs.

A controvérsia incluiu o Brasil, com o governo americano manifestando preocupação com o que considera “censura” por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à remoção de conteúdo, chegando a anunciar a restrição de vistos para os ministros do Supremo envolvidos em tais ações e, colateralmente, de outros ministros que julgaram os planos e ações de um golpe de Estado em janeiro 2023 na tentativa de ajudar a pressionar as autoridades em nome de um suposto aliado ideológico: a família Bolsonaro.

A colaboração direta entre a administração Trump e os titãs da tecnologia, que inclui as doações multimilionárias de empresas como Microsoft e Google para financiar a posse do ex-presidente, é descrita como um “sistema de negacionismo tecnorregulatório” por Walmir Estima no “Le Monde Diplomatique”. A expressão deixa claro que a estratégia não apenas despreza as leis democráticas, mas também implementa outros tipos de leis: “O que não é regulado pela lei está sendo disciplinado pelas lógicas embutidas nas tecnologias”, diz Estima.

Esse neoimperialismo/colonialismo de dados mostra como a centralização da informação é produzida através da lógica institucional de incentivos estatais para mercantilizar a internet, tornando o controle das Tecnologias de Informação e Comunicação o novo nó para a competição geopolítica num ambiente capitalista e neoliberal.

Brasil: Regulamentações “sem dentes”

Enquanto outras potências globais disputam poder e dados, o Brasil mostra vulnerabilidade digital. A esse enorme poder, alinhado taticamente com o uso de desinformação e discurso de ódio, há uma oposição esmagadora às tentativas regulatórias. O Projeto de Lei nº 2630/20, o polêmico “Projeto de Lei das Fake News”, foi arquivado após intenso debate. A questão hoje está dividida em três frentes:

  • No STF (Judiciário): a maioria dos ministros fixou esse ano a responsabilidade das plataformas pelo conteúdo publicado nas redes, reformulando o Artigo 19 do Marco Civil da Internet. A decisão, no entanto, carece de normatização (Como se caracteriza?, Quais as penalidades?, etc.)

  • No Congresso (Legislativo): Dois projetos estão em discussões mais avançadas. Uma proposta é apresentada por deputados de centro-direita – o presidente da Frente parlamentar Evangélica, Silas Câmara, e a filha do deputado preso e cassado Eduardo Cunha, Dani Cunha. O Projeto de Lei nº 4691/24, foi criticado pelo professor Marcelo Träsel, especialista em regulação em tecnologia, como uma “lei sem dentes”. Com 11 páginas, ignora o “dever de cuidado” fundamental que obrigaria as plataformas a moderar conteúdo potencialmente ofensivo com dano social material. O outro se arrasa análise na Câmara dos Deputados depois de aprovado pelo Senado. Trata-se do Projeto de Lei 2338/23, que regulamenta o uso da inteligência artificial (IA) no Brasil. Também é visto como uma legislação branda ao classificar sistemas diferentes com diferentes graus de risco, mas cuja análise será feita pelos próprios desenvolvedores, fornecedores ou aplicadores do sistema antes da chegada do produto ao mercado.

  • No Governo Federal (Executivo): O Ministério da Justiça lidera uma força-tarefa com ouros ministérios e instituições numa proposta relacionada à transparência das plataformas e direitos do consumidor. Busca estabelecer limites para o conteúdo divulgado pelas plataformas. Paralelamente, o Ministério da Fazenda planeja fortalecer o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para investigar práticas anticompetitivas.

No entanto, apesar da movimentação, a inação regulatória difere da posição da União Europeia que desenvolveu um pacote eficaz (com a Lei de Serviços Digitais e a Lei de Mercados Digitais) para conter o poder de mercado das Big Techs implementando um quadro complementar de normas.

Além da regulamentação, o Brasil luta com questões de soberania tecnológica. O governo desenvolveu e lançou o projeto “Nuvem Soberana” em 2024 na esperança de estabelecer uma infraestrutura nacional de dados segura e, de fato, celebra a contratação de empresas como Amazon, Google, Huawei e Oracle (entre outras). Essa estratégia põe nas mãos dessas empresas, por exemplo, o gerenciamento de dados de todo o sistema gov.br, que inclui dados pessoais e sensíveis de milhões de brasileiros.

O pesquisador Ergon Cougler, aqui mesmo em The Conversation Brasil, considerou a medida como uma “relação assimétrica” onde o país se torna um cliente passivo. A dependência tecnológica, como alerta o pesquisador bielorrusso Evgeny Morozov, exacerba a vulnerabilidade econômica e exige que os países em desenvolvimento invistam para desenvolver suas próprias infraestruturas tecnológicas.

A imobilização do Brasil nessa questão resulta em uma colonização digital feroz, ameaçando tanto a segurança dos dados quanto os meios para formular políticas públicas no interesse nacional. Neste exato momento, os presidentes Trump e Lula iniciam um diálogo sobre o tarifaço de Trump onde as contratações de data centers americanos e a própria regulação das plataformas foram postas na mesa de negociações.

O Brasil precisa urgentemente dissipar a falsa distinção entre regulamentação e liberdade de expressão, investir e proteger a soberania através do desenvolvimento de inovações tecnológicas como a Inteligência Artificial nacionalmente.

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