A nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA marca uma mudança desconfortável na forma como Washington vê a relação transatlântica. O documento abandona a noção de parceria entre iguais e passa a tratar a União Europeia (UE) como um projeto a ser corrigido, disciplinado e alinhado aos interesses norte-americanos.
Neste segundo mandato de Trump, consolida-se uma inflexão na política externa: os EUA passam a atuar, em relação à Europa, como um “parceiro constrangedor”, pouco disposto a reconhecer sua autonomia estratégica.
Essa mudança vai além da retórica e reflete a projeção global do chamado “corolário Trump à Doutrina Monroe”. Antes restrita ao Hemisfério Ocidental, sua lógica – primazia estratégica, exclusividade de influência e rejeição a polos autônomos, como o BRICS – passa a ser aplicada de forma implícita ao sistema internacional.
Aplicado à Europa, esse princípio redefine a aliança: a UE pode ser forte, soberana e relevante apenas se alinhada à agenda da Casa Branca. A parceria transatlântica deixa a cooperação e assume contornos de tutela política e econômica.
Essa assimetria se expressa em acordos comerciais desequilibrados e pressões tarifárias até interferências políticas indiretas e críticas abertas às instituições europeias. Em documentos oficiais, a UE deixa de ser vista como um projeto bem-sucedido e passa a ser retratada como uma engrenagem burocrática associada à suposta “erosão civilizacional” do continente.
A Casa Branca chega a recomendar que a Europa “volte a ser europeia”, abandonando o que o governo Trump define como excessos regulatórios, ilusões multilaterais e fragilidades culturais. Trata-se de uma exigência profundamente desigual, que desloca a relação transatlântica da lógica da parceria para a do constrangimento.
Diante deste cenário adverso, a UE precisa ficar de pé e erguer a cabeça – não para romper com os EUA, mas para recusar o papel de aliado coadjuvante.
Quando a aliança deixa de ser confortável
É nesse contexto que o conceito de embarrassing partner – parceiro constrangedor – ganha centralidade. Ele descreve situações em que um aliado formal passa a gerar custos políticos, simbólicos, econômicos e estratégicos para seus próprios parceiros. Desde janeiro de 2025, esse tem sido o papel desempenhado pelos EUA em relação à UE (e, também, a outros parceiros como Brasil, México, Canadá, China e Japão).
A crítica dirigida à UE é frontal, sistemática e diplomaticamente deselegante. Bruxelas é retratada como um centro burocrático que enfraquece soberanias nacionais, sufoca o dinamismo econômico e restringe liberdades políticas. Políticas ambientais, digitais, migratórias e industriais são apresentadas como sintomas de uma civilização em declínio.
O problema central não é a divergência política, comum entre aliados; mas, a deslegitimação moral e civilizacional do projeto europeu. Afirmações de que a Europa se tornaria “irreconhecível em 20 anos ou menos” carecem de base empírica sólida e ignoram dados econômicos, sociais e institucionais que mostram resiliência, inovação e capacidade de adaptação do continente.
Na prática, essa postura se traduz em pressões materiais concretas: exigências de aumento acelerado dos gastos militares, abertura dos mercados europeus a bens e serviços norte-americanos, alinhamento econômico voltado à contenção da China e restrições diretas ao alcance regulatório da UE.
A guerra da Ucrânia é um exemplo paradigmático. A administração trumpista aponta a UE e os governos europeus de sustentar expectativas irreais, bloquear soluções diplomáticas e dificultar processos democráticos internos para manter políticas impopulares.
O resultado é uma tensão estrutural: a UE é cobrada a agir como um ator soberano, mas tratada como se não dispusesse de legitimidade política, econômica e social plena.
Quando erguer a cabeça vira imperativo estratégico
A nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA afirma desejar uma Europa mais forte, soberana e capaz de se defender. Os EUA não descartam os europeus… Mas, tal autonomia deve ser cuidadosamente condicionada ao “corolário Trump à Doutrina Monroe”.
Os países europeus são incentivados a gastar mais em defesa, mas dentro de um ecossistema industrial, tecnológico e doutrinário dominado pelos EUA. Na prática, isso significa comprar equipamentos, sistemas e armamentos do complexo militar-industrial norte-americano. Nesse contexto, a Otan deixa de funcionar como uma comunidade política de segurança e passa a operar como instrumento de cobrança e disciplinamento dos países aliados.
Além disso, Washington demonstra preferência por uma Europa fragmentada. Relações bilaterais seletivas são estimuladas, especialmente com países da Europa Central e Oriental, em detrimento do fortalecimento da UE como bloco. Documentos vazados indicam até tentativas de enfraquecer a coesão do projeto europeu.
No campo regulatório, o desconforto é ainda maior. A crítica aberta às políticas ambientais, industriais e digitais da UE coloca o bloco em posição defensiva permanente. Alinhar-se aos EUA implica contrariar consensos internos arduamente construídos; divergir, por sua vez, acarreta riscos de retaliação econômica e isolamento estratégico.
O que está em jogo é o clássico dilema das alianças: ao se distanciar dos EUA, a UE incorre no risco de enfraquecer um vínculo estratégico; ao preservá-lo sem reservas, assume os custos do constrangimento político e simbólico associados à conduta do aliado.
Entre o constrangimento e a maturidade política
Diante desse cenário, “erguer a cabeça” não é um gesto retórico, mas um imperativo estratégico. Não se trata de romper com os EUA, mas de recusar o papel de aliado subalterno.
Lideranças europeias já sinalizam essa direção. Kaja Kallas, chefe da política externa da UE, reafirmou os EUA como principal aliado, mas defendeu cooperação com respeito mútuo. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, foi mais direta ao advertir contra qualquer interferência – inclusive de Washington – nos processos democráticos europeus.
Autonomia estratégica não é antiamericanismo. É maturidade política. Sem ela, a UE corre o risco de ser relevante apenas como instrumento geopolítico, e irrelevante como projeto histórico próprio.
Portando, a UE não pode ser “quintal” dos EUA. Quanto mais cedo essa posição for afirmada com clareza, coerência e continuidade política, maiores serão as chances de desencadear e acelerar mudanças materiais concretas.
